segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Rogério era um homem calado


Por Michele Calliari Marchese
Rogério era um homem calado, vivia só em um apartamento num bairro retirado da cidade. Era muito cedo quando acordou com o telefone tocando, ele não queria levantar naquele domingo frio, mas vencido pelo insistente chamado resolveu atender. Uma voz que ele não conhecia do outro lado deu a triste notícia: seu irmão estava morto.
O que se seguiu a partir daí foram horas intermináveis de sofrimento, a dor da perda sufocava-o, lembrava da infância e dos momentos felizes entre as brincadeiras infantis. E lembrou-se do tempo em que uma briga entre os dois separou-os, até aquele momento.
Seguiu tristemente até o cemitério e lá estava ele, dormindo a morte de uma vida interrompida por um acidente de carro, e ali ele chorou. Não via ninguém, não havia nada, somente o vazio entre os irmãos que a morte agora juntava.
Mas alguém chorava também, lástima, dor sentida, a dor do amor que se vai, e então ele viu Ema, a cunhada que nunca conheceu e imediatamente sentiu-se atraído por tão bela mulher.
Trôpego pelo conflito de emoções e sensações, louco em sua dor, não refletiu nem por um momento quando segurou o braço de Ema e em seu ouvido pecou, dizendo-lhe o quanto ficava linda de preto. Sutilmente Ema retirou-se, enquanto Rogério a seguia com o olhar, divagando sobre o futuro de amor juntos. Mas o desprezo dela era imenso, e naquele momento ele não poderia dizer o que se passou no seu íntimo, porque o choro que Rogério chorou não era apenas de dor, mas da vergonha de sua alma miserável.
Um misto de remorso e amor dilacerou todo o seu ser, levantou-se e desculpou-se, tamanha insensibilidade de caráter. Chorou amargamente, cansou de sua vida e de tudo.
Foi quando passou Ema e lançou-lhe o olhar mais sensual e atrativo que tinha visto e no aperto de mãos da despedida, um número de telefone num bilhete perfumado.




Copyright 2012 (c) - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão da autora.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Jacarezinho, Vargem Bonita e o João


Por Michele Calliari Marchese

Esqueci sobre o que queria contar. Estava com o assunto na cabeça há duas semanas, e quando tratei de contar, esqueci! Não sei se era alguma coisa relacionada a mim mesmo ou que tenha acontecido com outra pessoa. Pode até ser que seja alguma coisa do tipo objeto ou lugar e não ser relacionado às pessoas ou mesmo a mim, vou contando de outras coisas até que me lembre. É importante!

Aconteceu isso uma vez com um conhecido meu, nós nos encontramos na pracinha da Igreja Matriz e nos sentamos num dos muitos bancos de madeira que lá existem, alguns debaixo de árvores, outros próximos à fonte, tudo para a contemplação da natureza e dos passarinhos. Era um lugar idílico. Contam os mais antigos que a fonte — que era de bronze — veio de Portugal. Mas não sei não, acho que foi construída na região, já que ali abunda o cobre e outros minerais.

Eu vi uma dessas fontes na cidade vizinha, mas estava desativada e um tanto quanto abandonada. Tinha ido lá para ver se encontrava o nome do escultor e vi que faltava água na cidade inteira e os moradores estavam preocupados com a estiagem que já durava quarenta dias diziam uns e 60 dias diziam outros. Eu me lembro dessa viagem porque levei uma multa de trânsito e essas coisas são difíceis de esquecer. O guarda me multou porque estava com os faróis baixos desligados em dia de chuva.

Viajei até a fronteira do Paraná com São Paulo, e quando lá cheguei — em Jacarezinho — me disseram que era feriado municipal e não havia nada aberto com exceção do único hotel e da rodoviária. O ônibus estava lotado e muitos tinham ido para ficar na casa dos parentes, mas outros seguiriam viagem. Optei por ficar.

Minha mãe resolveu me acompanhar até o cemitério naquele dia, porque ela estava com medo de ficar sozinha em casa e meus irmãos estavam trabalhando. Quando chegamos lá, o cemitério estava cheio e o padre estava rezando a missa na Santa Cruz. A Santa Cruz é aquela cruz que fica no meio do cemitério para a realização das missas ao ar livre, já que não tem Igreja dentro do cemitério. É uma das coisas que nunca entendi muito bem, eu li em algum lugar que na Europa as pessoas enterravam os mortos dentro da propriedade de cada um e eu achei aquilo bem interessante. O único problema é que quando fossem vender a casa teriam que desenterrar os mortos e levá-los junto na mudança, ou vender os mortos junto com a casa e quem comprasse se responsabilizaria por acender velas e plantar flores.

Quando me mudei para Vargem Bonita, o meu guarda roupa ficou em frangalhos e tive que comprar um novo, o motorista do caminhão que levou a minha mudança não tinha muita experiência. Era amigo do meu filho e quis dar um empurrão para ver se ele ia para frente e ele deixou todas as minhas coisas para trás, tive muito prejuízo. Os jovens não ligam muito para as responsabilidades da vida.

Dia desses, tinha três rapazes na porta da minha casa, eu achei que fosse para fazer o estudo da Bíblia, e quando cheguei lá fora e abri o Livro, eles deram muitas risadas e me chamaram de velho gagá. Perdeu-se o respeito por tudo e por todos. Infelizmente eu acho que é o final dos tempos. Nem vou ficar surpreso se o mundo acabar agora, porque as coisas já estão acabando devagar, como uma vez que eu fui numa cidade e tinha uma seca danada e já fazia muitos dias que não chovia, parece que eram 40 dias. No lugar do Noé com a arca, ia ter o Pequeno Príncipe no deserto. A fonte até secou! Não dava graça de ir namorar na pracinha com a fonte seca.

Minha namorada adorava a pracinha e em muitas árvores nós gravamos nossos nomes com um grande coração ao redor. Me casei com ela depois de 5 anos de namoro, mas não fui ver se os corações ainda estavam lá. Numa viagem que fui eu vi que cortaram muitas delas e provavelmente as nossas não estivessem mais lá. Nem a fonte estava. No lugar construíram uma pequena capela em honra a não sei que santa. Era uma santa padroeira da cidade. Quando saíam as festas da padroeira, tudo ficava colorido com as bandeirolas enfeitando a cidade e as ruas. Eu ajudava a entreter as crianças e cuidava do balcão da pesca. Tinha criança que gostava do prêmio e outras não gostavam porque ganhavam barras de sabonete.

Isso também aconteceu com um amigo meu, nós nos encontramos na pracinha da Igreja Matriz, e... eu acho que já te contei essa história. O João faleceu no ano passado e eu nunca me esqueci das coisas que passamos juntos. Tanto é, que quando é Feriado de Finados eu levo uma flor para por no túmulo dele lá onde ele está enterrado, numa cidade perto de São Paulo. Não é sempre que eu posso ir e muitas vezes a minha mãe me acompanha, mas quando chegamos lá, ela chora muito e sente a falta do meu pai, assim como eu também sinto. Ele foi muito importante para a família inteira. Ele me ajudou muito quando me mudei para uma cidadezinha no interior de Santa Catarina e foi ele que me deu um pedaço de terra para plantar.

Eu li — e não lembro onde — que tem pessoas que enterram seus parentes no pátio da casa, e eu ficava imaginando enquanto arava a terra se não ia encontrar os esqueletos da família das pessoas que moravam lá antes de mim. Perguntei ao pai se ele queria que eu enterrasse ele ali, mas ele não gostou da idéia e me mandou trabalhar numa fábrica de minério. Eu fazia bronze, ligava o cobre com outros metais como o estanho, o zinco. Eu gostava de trabalhar lá. Um dia o dono me mandou “fazer” uma fonte. Eu fiz. Ficou tão linda que o meu patrão doou ela para a pracinha da cidade. Teve mais alguns pedidos e eu fiz todos.  Depois me machuquei, e acho que foi na mudança para Jacarezinho com os meus irmãos. Só sei que parei de trabalhar.

A minha esposa costurava vestidos e acabou ficando cega de tantas noites de trabalho costurando e lendo a Bíblia. Queria que o nosso filho fosse padre, mas não existia seminário em nossa cidade, então ele acabou indo trabalhar num hotel de uma cidade vizinha. Minha esposa morreu. E sempre que posso eu vou ao cemitério levar uma flor para por no túmulo dela, lá onde ela está enterrada, em Vargem Bonita. Não é sempre que eu posso ir e muitas vezes a minha mãe me acompanha, mas quando chegamos lá, ela chora muito e sente a falta do meu pai, assim como eu também sinto. Ele foi muito importante para a família inteira.

Eu já te contei sobre o meu amigo João? Eu queria te contar uma coisa, mas não consigo me lembrar o que é.





Copyright 2012 (c) - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão da autora.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Às Sete Horas



Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.

Esse causo é muito verídico e ainda assombra a cabeça dos envolvidos. Aconteceu num dia muito bonito em que o povo da Campina festejava o Dia de Nossa Senhora.
As mesas arrumadas, as mulheres conversando, os homens assando a carne e as crianças brincando.
O pessoal montou meio às pressas várias patentes para o uso durante o dia. Eram feitas de madeira, tiradas dali mesmo do meio do mato. Algumas estavam apenas amarradas e outras tinham pregos para susterem-se no chão de terra batida. Fizeram três para cada, masculino e feminino.
E tudo transcorria bem, até que o sino da igreja badalou sete vezes anunciando as sete horas da noite. O Padre Dimas ficou preocupado, pois que era só ele que tinha as chaves para chegar até o sino. Resolveu correr até lá e ver quem tinha badalado e constatou muito a contragosto que a porta de acesso estava trancada e com o cadeado exatamente do jeito que ele tinha deixado há algum tempo atrás.
Foi quando escutou muitos gritos e todos vinham correndo em sua direção. Diziam coisas sem nexo e uma das mulheres enquanto corria erguia a camisa para mostrar alguns arranhões vermelhos em sua barriga. Chorava muito essa mulher e estava visivelmente transtornada dizendo que tinha alguém ou alguma coisa que a agrediu na patente.
O Padre tentava a todo custo acalmar a mulher quando ouviram um barulho muito forte vindo de lá e muitos gritos.
“É o tinhoso, é o demo”, gritavam e mais apavorados ficavam os que ouviam e não tinham coragem de acudir.
Muitos homens armaram-se de paus e pedras para defender a pobre gente, mas não tinham brio de sair de perto do padre. Quem teve presença de espírito para ver o que estava acontecendo foi o barbeiro, que, com a sua contumaz frieza pegou um pedaço de pau, enrolou sua camisa nele e tacou fogo.
Dirigia-se ao local enquanto escutava atento o povo dizendo que tinha visto o belzebu. Com certeza absoluta! Alguns tinham visto em detalhes e outros tinham sentido até o cheiro.
O Padre colocou todo mundo dentro da igreja e puseram-se a rezar e a acender velas e lampiões. As crianças choravam um choro estridente e gritado, deixando a coisa mais assustadora ainda.
O barbeiro que não acreditava que o “coisa ruim” apareceria na Campina, foi pé ante pé, num silêncio muito seu e estacou em frente às patentes. Rezou uma reza que sua ama de leite tinha-lhe ensinado na infância e abriu uma a uma das portinhas. Fora a fetidez típica do local, não viu nada além de alguns tamancos esquecidos na pressa da fuga.
Botou uma pedra de encalço em cada portinha e ficou ali de tocaia, olhando o nada e sentindo o cheiro nauseabundo da fossa.
Foi quando todos ouviram o sino badalar mais uma vez as sete vezes; e quem estava dentro da igreja tratou de fugir desesperadamente para as suas casas e o Padre para o meio do mato atrás do barbeiro.
O barbeiro achando tratar-se do padre a badalar, como um sinal que ele pensou ser um aviso, resolveu por conta atear fogo nas patentes. E assim o fez.
O padre quando viu o fogo alto vindo da direção do barbeiro e das patentes, deu meia volta e correu para a primeira casa que apareceu na sua frente. Muito assustado e quase tendo uma síncope, ajoelhou-se com a família da casa ali mesmo no chão da varanda e começou a rezar uma reza em favor dos mortos, pois que não vinha nada na sua cabeça a não ser isso.
Estavam muito compenetrados, quando o barbeiro apontou à vista da casa sem a tocha e muito enegrecido de fuligem. E todos desabalaram em correria, pois acharam tratar-se do próprio diabo aparecendo em corpo, alma e calças compridas.
Teve que ter grito do barbeiro dizendo quem era para que a turba aquietasse os ânimos, e quando todos chegaram perto o barbeiro disse que ao sinal do padre — aquelas sete badaladas — tinha tacado fogo nas patentes e que jurava por todos os santos que conhecia que não tinha nada por lá. Que era invencionice do povo.
O povo se ofendeu e mais ainda a mulher arranhada que não se conformou com o veredito do barbeiro. Este disse a todos que havia alguns pregos mal pregados e possivelmente ela havia se arranhado ali.
“E quem badalou o sino?” Perguntaram. “Foi o padre.” Respondeu o barbeiro.
E o padre, olhando para a igreja e em seguida para o barbeiro e depois para o povo disse:
“Eu não badalei o sino, vamos todos lá ver.” E foram todos atrás do padre que tirava de dentro do bolso da batina um molho de chaves que não serviu nenhuma no cadeado e que o vizinho arrebentou a machadadas. Subiram às cegas e lá não encontraram nada além do sino inerte e do vento que assobiava em algum lugar por ali.



Copyright 2012 (c) - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão da autora.