segunda-feira, 29 de julho de 2013

A Chuva de Sapos



Por Michele Calliari Marchese

Aconteceu num domingo, quando todos estavam sesteando depois do almoço. O tempo nublou e se ouviam trovões ao longe, mas ainda estavam distantes e a chuva que viria era convidativa para um sono mais prolongado, de modo que as pessoas continuaram deitadas e tiveram que puxar cobertores porque esfriou de repente.
A chuva começou fraca, sem vento, lambuzando as janelas e depois veio forte, contínua. Uma benção que caía sobre a terra. Alguns dormiam, outros namoravam, outros se preparavam para levantar e fazer o chimarrão. E todos se assustaram quando um barulho forte e intermitente ameaçou com uma chuva de pedras. Acabou com a plantação, diziam todos.
A chuva durou pouco, mas o suficiente para encher as ruas de sapos e pererecas e ninguém conseguiu sair de dentro de suas casas sem pisar em algum desses bichos. Caíam mortos pelos telhados, entupiram muitos canos e realmente acabaram com a plantação.
Por onde se via, era um tapete de sapos de todos os tamanhos e cores e não havia lugar onde não tinha um pulando ou coachando. Ninguém sabia o que fazer, mas tinham que fazer alguma coisa rapidamente antes de sair o sol, que acabou saindo logo em seguida para desespero da cidade.
Algumas mulheres começaram a varrer a entrada de suas casas e os homens subiram nos telhados para limpá-los e consertar as telhas quebradas pelo impacto da chuva que ninguém sabia ao certo se tinha sido realmente de pedras ou de sapos. Logo, não havia mais lugar para amontoar tanto bicho e muitos deles saltavam de volta ao lugar de onde tinham sido varridos e se escondiam debaixo das casas e dentro de valetas e vasos já sem flores.
As vassouras logo ficaram empapadas de visco e tinham que ser trocadas por pás ou ancinhos, que nesse caso prejudicavam ainda mais a situação que já estava deveras horrorosa. A coisa já estava muito complicada quando nos lugares escolhidos para o despejo não cabia mais nenhum sapo. Houve um rumor alto de vizinho para vizinho e a notícia que se soube e que valeria a pena tentar era um enterro em massa.
Foi o que fizeram.
Começaram por enterrar os mortos em grandes fileiras a céu aberto, e conforme os bichos caíam lá dentro, uma grande turba ia fechando e batendo com os pés para que a terra ficasse firme.
Todas as hortas e plantações receberam em seu seio aquela quantidade imensa de sapos e pererecas e em muitos lugares a geografia foi alterada de campo para pequenos morros, como se pode constatar hoje, depois de 90 anos passados, onde fica uma prolífica plantação.
Para os sapos vivos adotaram a técnica do “passa fora” deixando o serviço para as crianças que estavam se divertindo. Muitos batráquios pularam no rio e nunca mais foram vistos, outros foram morrendo aos poucos aqui e ali, mas a situação já estava controlada.
Por muito tempo a população festejou aquele dia como um feriado, pois que era a luta de todo um povo contra uma intempérie um tanto quanto fora do comum.
Depois de alguns anos, os festejos foram cancelados. E essa história foi contada de pai para filho como numa procissão de vida.
Os campos sempre férteis da Campina da Cascavel são uma prova viva e viscosa desse causo e é uma pena que ninguém se lembre do ocorrido.






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quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Comerciante



Por Michele Calliari Marchese

Numa manhã de domingo, o povo da Campina da Cascavel ao sair da missa se deparou com uma carroça parada em frente à igreja, toda enfeitada com bandeirolas coloridas e um grande cartaz escrito à mão que dizia: “A cura dos males está aqui”.
“De qualquer mal?” Pediu a Dona Salvina e o viajante, que logo se adiantou, disse com uma certeza de doer no peito que sim, que bastava dizer de que mal sofria que ele tinha o medicamento que curava. Era infalível.
Pois o viajante, que se chamava Humberto, se viu rodeado de tanta gente que não hesitou em começar o seu discurso de vendedor. Eram tantas as maravilhas que o remédio proporcionava que ele tinha tido um vislumbre extraordinário de salvar os doentes e não doentes daquela cidade que ele nem sabia o nome.
“Campina da Cascavel” gritou um. E o Humberto refez a retórica com o nome de nossa cidade cantada aos quatro ventos. Pois tinha uma voz retumbante o Humberto e também tinha os ouvidos apurados quando constatou que a dúvida pairava ainda na cabeça das pessoas. Alguma coisa fazia com que ninguém sequer quisesse experimentar a dita água milagrosa.
Pois era obra do tabelião que se postou em frente ao Humberto e disse que na capital — pois tinha ido lá no ano passado — a polícia já tinha prendido um meliante igual a ele por ter vendido “gato por lebre” e ateado fogo na carroça em praça pública.
O Humberto não se deu por vencido e disse que era aquele tipo de homem — o preso na capital — que fazia denegrir a imagem dele, comerciante honesto e trabalhador e que conhecia o índio que fazia os remédios, e era pegar ou largar, pois que o índio estava para morrer e ele teria que mudar de profissão muito em breve. Chamou uma moça que estava bem no meio da turba, a Lizandra, que ficou chocada com aquele dedo apontado para ela. Os pais da Lizandra não permitiram que ela fosse até a carroça, pois que eles não queriam que ela se expusesse diante da população com coisas que eles desconheciam.
E também porque o moço era bonito de fazer carreiro de pétalas de flores onde passasse, e a mãe da Lizandra tinha medo que ela se deixasse levar pela lábia e pela beleza do vendedor e acabasse comprando o dito do frasco de remédio.
A Lizandra estava esperando completar seus 18 anos para ir ao convento, onde se ordenaria freira. Todo mundo sabia da vocação da moça e todos disseram que fosse até a frente da carroça, porque seu caráter inquestionável não levaria em conta o embuste — se houvesse algum.
Pois o Humberto que aguardava em silêncio a chegada da Lizandra, foi separando uma garrafinha marrom cujo conteúdo não dava para ver, pois o rótulo pintado de cores vivas e chamativas escondia tudo.
Perguntou à Lizandra se tinha alguma coisa que a incomodava e a moça disse-lhe muito baixinho que estava com dor de cabeça por causa daquela balbúrdia e também por causa do sol que estava queimando o coro cabeludo e ela havia esquecido o guarda chuva. E o Humberto muito compenetrado levou uns bons minutos para se decidir sobre qual frasco daria para ela beber. De graça. Precisava que alguém experimentasse para mostrar àqueles incrédulos que a poção que vendia era de fato miraculosa.
A Lizandra que pediu permissão aos pais para beber e ouviu um não e um sim ditos juntos, um da mãe e outro do pai, não soube o que fazer, mas a Dona Salvina que estava na frente dela lhe fez uma careta do tipo que se bebesse — mesmo que fosse uma tramoia — não iria lhe fazer mal e ela então destampou o frasco diante da população mortalmente silenciosa e bebeu tudo de um gole só.
Limpou a boca com o punho e fechou os olhos. O povo continuava em silêncio e a mãe da moça chorava baixinho compungida.
A Lizandra abriu os olhos e disse numa alegria diáfana que estava curada e então a turba se aglomerou diante da carroça gritando seus males e querendo um frasco para si. Ninguém duvidava da Lizandra e ela desapareceu no meio da multidão.
Terminado o estoque de remédios, o Humberto atrelou o cavalo na carroça e deu partida a galope saindo da cidade sem mais tardar.
Quem assistiu a cena foram os pais da Lizandra que estavam esperando a moça para ir para casa. E comunicaram o seu desaparecimento no mesmo dia ao delegado que deu ordem de busca pelos matos, pois que poderia ser que ela tivesse se perdido no caminho para casa.
E a Lizandra contava o dinheiro dentro da carroça e gritava ao Humberto que estavam ricos e riam os dois no frenesi dos amantes de longa data.





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segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Causo do Ubaldo



Por Michele Calliari Marchese

Aconteceu que numa tarde de sol a pino, o cidadão de nome Ubaldo estava dando uma surra num sujeito já deitado na estrada.
Teve que ter uma interferência do pessoal que estava por ali; chamaram o delegado que imediatamente carregou o ferido para a delegacia e levaram Ubaldo no cartório para tomar uma água, fumar um palheiro e esfriar os ânimos.
“Peguei o noivo de minha filha e ela no sofá de casa.” Foi a única coisa que conseguiu dizer, e muito baixinho até. Tanto que ninguém escutou.
Na delegacia, o homem surrado nada falou, só gemeu. O delegado por fim resolveu segurar o rapaz num quartinho de despensa; não tinha cela porque não havia presos, ou estavam mortos ou foragidos e nesse caso que outra comarca se responsabilizasse. Foi atrás de Ubaldo, deixando o preso trancado a chave e cuidado pela sua esposa, mulher envaretada dos diabos. Se fugisse ia tomar outra surra e pior do que a que tinha levado.
O delegado voltou suando e com os botões da camisa aberta até o umbigo revelando a montoeira de pelos pretos e grisalhos do peito. Todo mundo olhou aquilo e, percebendo, tratou logo de abotoar a camisa e se enxugar um pouco com um lenço puído que tirou do bolso da calça fazendo voar o pente pequeno e preto que todos se abaixaram para pegar. “Obrigado”, disse o delegado e concluiu “vamos para a delegacia, Ubaldo, o senhor sabe que deve prestar queixas contra aquele indivíduo que o senhor surrou na estrada”.
Ninguém questionou a imparcialidade do delegado, primeiro porque tinham visto um jagunço fugido no meio dos matos da Campina e segundo porque Ubaldo era homem de bem e tinha uma única filha que contava já com 15 anos e um bom casamento à vista com um sargento lá de Pato Branco que ele ainda não conhecia. Tinha feito os acertos do casamento com o pai do rapaz e este devia se apresentar por aqueles dias.
Ubaldo pensou, relutou, mas foi na delegacia. Achava que o delegado tinha os poderes e a tecnologia para chamar o governador, seu compadre, e por quem nutria grande confiança e também porque tinha chegado um telégrafo que ninguém sabia o que era, mas era o progresso.
O delegado acabou concordando e enviou a mensagem que dizia assim: “AK saudações pt Urgente sua presença Campina pt Ubaldo pt”. Ninguém imaginava que quinze dias depois, chegava à Campina da Cascavel o ilustre governador, com a barba passando o queixo, os cabelos desgrenhados, cheirando a suor de cavalo e a camisa aberta até o umbigo, que ninguém olhou. Nem bem desceu do cavalo exigiu a presença do compadre Ubaldo.
Toda a população se aglomerou em volta do cavalo do governador e de sua comitiva que era composta por mais dois cavalos e dois policiais à paisana.
Ubaldo chegou e ficou horas conversando com o governador e então ele irrompeu pela porta e disse: “quero ver o meliante”.
“Meliante? Meliante? Quem é esse? Aqui não tem ninguém com esse nome.” Gritava a população em polvorosa.
O governador, após revirar os olhos, disse “Quero ver o velhaco que engrupiu Ubaldo no que há de mais sagrado”.
“Ah!” Disseram todos em uníssono. “Está na delegacia”.
“Então vamos para lá” disse o governador raivoso. E a turba foi atrás.
Lá chegando, encontraram um bilhetinho na porta de entrada da delegacia com letras miudinhas e que dizia mais ou menos assim: “Viajamos para Palmas ver os filhos, voltamos em vinte dias”.
Ninguém sabia há quanto tempo aquele bilhete havia sido escrito. Começaram a procurar até que sentiram um cheiro de podre vindo de algum lugar por ali.
Resolveram arrombar a porta. E mais uma, a porta da despensa. A maioria vomitou, mas o governador não. Revirou o cadáver e encontrou uma carta e uns documentos rasgados e concluiu: “Ubaldo, agora você tem um problema a menos. Ou um a mais”. Dito isso deu meia volta e junto com a comitiva pegou a estrada de regresso à capital deixando uma nuvem de poeira que ninguém jamais esqueceu e que foi contada aos filhos e aos filhos dos filhos como sendo o dia mais glorioso da Campina da Cascavel.
Ubaldo, com os documentos do morto na mão, baixou a cabeça e foi embora com o tabelião.
Meses depois, a filha de Ubaldo que ficou repentinamente viúva dera à luz um menino forte e saudável chamado Angelo ou Angelin como ela o chamava.
Dizem que a viúva nunca mais quis se casar e Angelin quando ficou moço se bandeou para os lados do Paraná e nunca mais voltou. Queria ser jagunço.
Estava no sangue.




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quinta-feira, 18 de julho de 2013

E quem morreu foi a outra



Por Helena Frenzel

Antes de ir parar na casa da mulher do cabelo verde, vivi um tempo em casa de uma família. Eles gostavam muito de bichos, me tratavam muito bem. Teria sido a melhor lembrança da minha vida aquela casa, não fosse uma Dona bicuda que trabalhava lá. Chamava-se Maria das Dores, Dasdor pra simplificar.
Diziam que a vida poucas vezes havia sido boa com ela. Tudo quanto é sentimento negativo parecia encontrar guarida naquele corpo magro, desnudo de compaixão. Vestígios de felicidade em seu rosto, lhe juro, nunca vi! E olhe que eu me esforçava para fazê-la sorrir. Jamais logrei tal façanha.
Nem mesmo quando a caçula da família apareceu em casa com uma pomba atropelada. A pobre teve uma das asas quebradas e jamais voltou a voar, ainda mais depois de ter criado aquela pança. Precisava de ver, minino, a pomba passava só à base de milho e ração de boa qualidade.
Dasdor era a única a implicar com os bichos: “Onde já se viu criar pombo em casa feito bicho de estimação? Já não bastam as galinhas, seis cães, quatro gatos, dois coelhos, os canários e esse papagaio fi-d’ua-égua?”.
Ensinei a pomba — eita bicha burra! —, sempre que Dasdor aparecia, a fazer um ruído assim: “eutefuroocu-eutefuroocu!” Ah, minino, que a nêga ficava doidinha; me chamava de depravado; tinha de ver.
Para desespero da caçulinha, um dia a pomba apareceu morta, prensada por trás de umas caixas de madeira na despensa, ao lado da cozinha. Ninguém sabe o que aconteceu. Por certo, um acidente — versão oficial. “Coitadinha”, dizia Dasdor. Eu apertava o fi-ó-fó de tanto medo por um destino deste ou outro pior!
Dasdor vivia mal-humorada. Dizem que mau humor pega, mas por ser caprichosa nos serviços e cozinhar muito bem, trabalhou longo tempo naquela casa, sem grandes problemas. Vai ver a família era imune a coisas assim...
Por ser uma casa de sítio, a cozinha era bem ampla e quase toda aberta, muito arejada. Por um lado, é claro que isto é muito bom. Por outro, nem tanto, pois de vez em quando apareciam umas visitas sem cartão.
Num dia desses, estavam todos à mesa esperando para tomar um café fresquinho que Dasdor estava para coar, na pia, quando de repente ouviram ela se queixar: não sei o quê havia lhe picado o pé. E não demorou muito deram com uma visita inesperada, enrolada nos canos debaixo da pia.
Foi um pega-pra-matar, minino, e no meio da confusão a cobra sumiu. A família estava mais preocupada do que a Dasdor, pois ninguém sabia se a dita cobra era ‘matadora’ ou não. E Dasdor, muito tranqüila, dizia que não tinha perigo, que logo passaria. E passou mesmo. Horas depois continuava vivinha bulindo, e na parte superior do pé só um leve arranhão.
A dona da casa mandou vasculhar o sítio inteiro atrás da cobra bandida, e por volta do meio dia um cadáver apareceu. Disseram os especialistas do sítio que era um tipo muito venenoso. Eu não sei de nada não... Só sei que no meio de toda a confusão da mordida, coitada da cobra, pois foi ela quem morreu. Há casos que desafiam a medicina? Tire você suas próprias conclusões.




Desta série, leia também:

No Restaurante - O Show da Vida, Pelo Nexo e Meio Sem Fim e Voltando à Ativa.




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