quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

E o Natal Chegou...

Por Michele Calliari Marchese

E o Natal chegou...


... ao fim!

“Ufa!”, pensou a Dona Marta. Finalmente chegara ao fim aquela festança familiar que por um lado é bom, mas por outro lado ela não entendia muito bem o significado daquela data que com o passar dos anos acabou tornando-se um fastio. Quanta louça; olhou para a pia entupida e suspirou com as mãos no rosto. Ouvia ao longe aquela conversa ininteligível e fora interrompida de seus pensamentos quando um dos netos postou-se ao seu lado “para ajudar a lavar a louça vó”, e ela respondeu-lhe que sim bastava pegar o banquinho no banheiro que iriam começar.
Vestiu aquele ajudante com um avental que teve que ser dobrado três vezes na cintura para que o pequeno não tropicasse nele. Os pais daquela criança sentados lá fora conversando uma conversa universal enquanto a mais velha e o mais jovem trabalhando para que o dia seguinte fosse mais limpo, mais claro e mais harmônico. “Você gostou dos presentes?”, entabulou uma conversa com o neto e ele respondeu-lhe que sim apenas com um aceno de cabeça, estava muito compenetrado fazendo espuma com o detergente e apertando repetidas vezes a esponjinha sem lavar nada. E a Marta lembrou-se de seus anos primórdios e de como eram diferentes os natais de sua infância quando via a mãe trazer de dentro do quarto uma caixa com as bolas que enfeitariam uma árvore de verdade, plantada numa lata de banha e essas bolas quebravam com o mínimo esforço e novamente ouvira a voz da mãe ali enxugando as colheres da sobremesa: “cuidado com as bolas de natal, elas são frágeis e caras”, e tinham que cuidar porque quando quebravam cortavam os dedos.
Ouviu um barulho de alguma coisa caindo e correu para a sala —de onde viera o barulho —para ver o que tinha caído e sem pensamento de nada viu que o gato finalmente havia saído de seu esconderijo derrubando aquela árvore artificial sem quebrar as bolinhas inquebráveis —quanta diferença —e estava se lambendo sentado um pouco a frente da bagunça que fizera. “Alguém decerto que arrumará”, ela pensou e voltou para os afazeres com o neto que ria e perguntava por que o gato havia derrubado a árvore e ainda bem que não o fizera enquanto o papai Noel estava lá.
“A vovó acredita em Papai Noel?”, perguntou aquele inclemente perguntador de coisas e diante do recuo da avó em responder, disse na sabedoria infantil que ele também não acreditava, mas tinha que acreditar porque o irmão era um bebê. E também porque o Papai Noel trazia presentes. A avó suspirou; também acreditara em algum momento de sua vida naquele velhinho vestido com roupas de inverno e que trazia presentes, porém num Natal que não fez muita questão de lembrar, mas lembrou, quando apareceu muito tarde da noite um homem vestido de vermelho, muito suado e com uma máscara; a máscara era tão assustadora que daquele Natal em diante os natais nunca mais foram os mesmos. Se for para divertir as crianças bastava que dessem uma bola e não um homem com uma máscara. Nunca descobrira quem era aquele falso bom velhinho.
Tropicou num embrulho que apareceu quando o cachorro o trouxe para perto deles e ela deixou cair os braços para afagar o pobrezinho que tinha medo de foguetes e então o neto cheio de espuma também resolveu acarinhar o bicho. A Dona Marta nada disse, pois já pedido inúmeras vezes que fossem prender o cachorro na coleira para que não saísse em disparada quando das espoucadas dos fogos de artifício. “Se quiser uma coisa bem feita, faça-a você mesma”, pensou naquele momento e viu o neto pegar uma faca para lavar e tirou-a imediatamente das mãos do menino e deu os pratinhos de sobremesa para que ele lavasse e lembrou quando queria lavar a louça e sua mãe não deixava porque muitas tias e primas faziam o serviço; pensou em quanta diferença de hoje em dia, tinha errado na educação? Foi prender o cachorro e voltou para terminar a louça quando viu o pequeno lavando as paredes com a esponjinha.
Ela e o neto, sozinhos os dois no meio de tanta gente que conversava conversas que se deturpavam conforme as horas avançavam inexoráveis em direção ao outro dia, o dia seguinte, o dia da clareza, do silêncio e da falta das risadas e das máscaras de papais-noéis.
Ajuntou todos os embrulhos do chão enquanto o neto segurava o saco de lixo, rindo em sua inocência e fazendo perguntas intermináveis, cujas respostas eram imediatamente feitas por ele. Pensou que aquele Natal tinha sido o Natal mais prazeroso de sua vida, aquele cujas festas foram resumidas à companhia de um neto de 5 anos e pensou no bebê que começou a chorar no quarto, assustado pelos fogos de artifício; pegou-o no colo e afagou aquela cabeça cheirosa e os três ficaram a conversar no quarto enquanto ouviam ao longe, como se fosse num outro mundo os desejos de felicitações de outras pessoas —que eram a sua família —bem ao longe, num lugar inacessível, no agora do outro dia.

Ela abraçou aqueles dois netos e desejou que continuassem pequenos e que não crescessem nunca para que no Natal do ano seguinte eles pudessem ter outro igual àquele que tiveram de conversas amenas, risadas e comunhão amorosa, sem presentes e sem máscaras, com o sentido concreto em seus corações de que o Natal não precisa ser uma festa descomunal, apenas uma esponjinha cheia de espuma para lavar as paredes vazias de uma casa cheia.




Nota: este texto faz parte do ebook natalino 
E Que Viva o Natal (baixar aqui).


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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Valor dos Sonhos


Por Celêdian Assis de Sousa

Caía a tarde, já se pintava no horizonte uma aquarela de belos tons, sol desmaiando lentamente, trazendo as cores de fogo, sob os azuis que aos poucos, acinzentavam-se. Cenário perfeito para ele, aquele ancião, que da varanda, em sua cadeira de balanço embalava seus pensamentos e alimentava a sua sabedoria.
Já fazia parte de sua rotina diária sentar-se ali e meditar sobre a beleza que existe nos contrastes, dos sóis e luas, das cores da vida. Não raro passava por ali uma menina faceira, que lhe interrompia os pensamentos. Ela, esperta e curiosa, sempre sorridente parava para cumprimentá-lo e para fazer-lhe perguntas sobre as coisas mais triviais, o que sempre rendiam boas conversas. Ela, com a natural simplicidade de criança, o levava a transportar-se para o mundo de fantasias.
Nessa tarde, a menina chegou, abraçou-lhe e contou-lhe algumas façanhas do dia, o que ele ouviu atentamente e ao final sorriu um daqueles sorrisos ternos, que pareciam consentir que ela o transformasse em criança. A conversa enveredou-se entre muitos temas, até que de repente, sem nenhum embaraço ela pergunta ao ancião:—O senhor acredita em Papai Noel?—A pergunta tomou-o de súbito espanto, mas tão logo se recuperou, tomou-lhe as mãos, olhou-a com ternura e começou a contar-lhe uma história:

—Quando eu era ainda um menino, esperava pelo dezembro com muita ansiedade. Eram dias nos quais eu me sentia muito feliz. Não havia luzes coloridas enfeitando as casas, como as de hoje, mas havia sempre no canto da sala a árvore feita de galhos de pinheiro, com as bolas multicores e era como se cada uma delas guardasse os meus sonhos. A família parecia transbordar de amor e uma alegria incontida tomava conta da casa. Meus pais davam a mim e aos meus irmãos, sapatos novos, logo no início do mês e diziam que deveríamos guardá-los até a noite do Natal, quando então os colocaríamos na janela, para recebermos os presentes que Papai Noel nos traria. Por muitos e muitos anos eu acreditei que Natal significava “dia de ganhar presentes”. Pois bem, eu crescia e assim como você agora, passei a perguntar-me se Papai Noel existia. Muitas vezes fiquei em dúvida, pois eu convivia com outras crianças e algumas nunca ganhavam presentes, na casa delas não havia sapatos novos para se colocar na janela e seus pais às vezes, não se importavam com Natal. Eu só entendia que aquilo não era justo e se ele existisse mesmo, não se importaria de deixar presentes, mesmo que não houvesse sapatos na janela, ou árvores na sala. Foi daí que comecei a pensar no verdadeiro significado do Natal e fui crescendo até envelhecer, sempre pensando e agora me vejo aqui diante de você elaborando a resposta para a mesma pergunta, a mesma que fiz a mim a vida toda. Então eu lhe digo: eu acredito em Papai Noel, pois ele tem me dado um presente a cada dezembro, que me sinto vivo. Entendi que não preciso dos sapatos novos e nem preciso receber caixas com laços de fitas, apenas preciso sentir a presença dele na minha imaginação, esperando sempre por ele, esperando que haja um próximo dezembro. Presente significa receber da vida o que é fundamental para te fazer feliz, e em cada momento dela descobrirmos o que é realmente importante para nós. Então minha linda menina, saiba que, nesse Natal já recebi o meu presente e você é o meu Papai Noel. Este sorriso que me trouxe, o abraço terno e sua meiguice de criança fazem com que eu me sinta vivo e de novo feliz, como nos tempos de menino.

A menina sorveu cada palavra e entendeu que Papai Noel existe e que ele é o próprio presente, o que escolhemos para manter viva a magia dentro de nós.




Nota: este texto faz parte do ebook natalino a ser lançado muito em breve no site do Projeto Quintextos.

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sábado, 20 de dezembro de 2014

O Nascimento

Por Soraya Souto

Eles seguiam devagar em meio à agitação febril da rua. Destoavam das pessoas apressadas que entravam e saíam das lojas, carregando sacolas de presentes com as últimas compras natalinas. O seu ritmo mais lento de caminhar parecia incomodar um pouco os outros, que aceleravam o passo para ultrapassá-los como se tivessem receio de lhes tocar.

Depois de dias procurando emprego naquela cidade, tinham sido obrigados a deixar a pequena pousada onde estavam, e saído à procura de um outro lugar para ficar. O homem amparava a mulher grávida, oferecendo-lhe apoio a cada parada, e um sorriso de incentivo quando recomeçava a caminhar.

Desde aquela manhã ela sentia dores, e estava assustada com a proximidade do nascimento do seu primeiro filho. Já era quase meia noite quando ela pediu para parar.

Olhando em redor, ele a conduziu através de algumas caixas de madeira, e palets abandonadas, na entrada de um beco próximo. Rapidamente ele improvisou um abrigo, esmagando algumas caixas de papelão grandes para ela ter onde reclinar-se. Depois empilhou caixas contra o vento frio e o ruído que vinham da rua. E algumas sacas velhas, rasgadas, emprestavam alguma intimidade àquele recanto do beco onde, ele sabia, o milagre da vida não demoraria a acontecer.

O dia terminava, e a escuridão trouxe consigo uma pequena fogueira que alguém acendeu. Pouco depois, uma velha senhora surgiu oferecendo uma tigela de sopa. Aos poucos, outras pessoas que ali se abrigavam foram aparecendo. O pequeno beco revelava-se, agora.

Uma luz fraca acendeu-se, numa janela alta, iluminando mais um pouco. De uma porta que se abriu, dos fundos de um restaurante, vieram toalhas limpas. De algum outro lugar, uma velha manta de lã somou-se ao momento.

Enquanto isso, na rua as pessoas passavam indiferentes, desconhecendo o que ali se passava, e a harmonia fraterna que se estabelecia, como um laço natural entre os que dividem dores e dificuldades. Quando a hora do nascimento chegou, deram-se as mãos silenciosamente, em uma expectativa sincera pela nova vida que acontecia.

O bebê chegou com os primeiros raios do sol, e seu choro alto e forte ecoou pelas paredes do beco. Foi colocado em uma pequena caixa de papelão, sob os olhares dos pais felizes e emocionados.

E quando os sinos da igreja, na rua ali ao lado, convocaram os fiéis para a primeira missa do dia, os moradores do beco já estavam ajoelhados e fazendo uma prece pelo pequeno recém-nascido, que trouxera consigo a alegria da vida, e reunira em si as esperanças de tantos com bom coração.

Era Natal novamente.




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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ao Que Muitos Chamam Natal

Por Helena Frenzel

Do lugar do motorista, no carro parado no estacionamento, ela observava meio emburrada o vai-vem tão típico das vésperas de Natal. Não agüentava mais todo aquele consumismo. Todo ano é a mesma coisa! O clima melancólico, os lembretes de que muitos não têm sequer o que comer... E as campanhas tilintando: Compre Baton! Compre Baton! E tudo é sempre coca-cooolaa. Não, não suportava mais aquilo! Se possível, gostaria de dormir e acordar bem depois de haver baixado a poeira de todas as festas de fim de ano. Em meio às suas revoltas sazonais, contra o sistema, uma coisa naquele estacionamento movimentado chamou-lhe a atenção. Tratava-se de uma menina que, naquele momento, começava a acomodar suas compras natalinas num pequeno carro, modelo popular. Talvez aquela mocinha não tivesse mais que 18 anos... Viu quando ela, primeiro, trouxe uma caixa plástica transparente. Dentro da caixa, várias bolas douradas e outros enfeites natalinos espremendo-se e concorrendo entre si, esperando ansiosos para saber a quem tocaria a sorte de ficar com a vista mais legal da janela. Nem adiantou a briga dos enfeites, pois a menina acomodou a caixa no chão do automóvel, no banco traseiro, escondendo-a, ou melhor: protegendo-a à sombra do banco do passageiro. E ela, nossa voyeur, de seu posto, chegou a ouvir os gritos de decepção e os choros, que em nada faziam recordar os chorinhos musicais chorados com tanto gosto pelos chorões passados brasileiros. Era mesmo um berreiro! Irredutível, a menina voltou ao carrinho de compras, agora para retornar com duas orquídeas, cada uma em cada vaso. “Embora não passem de parasitas, chame uma orquídea de aproveitadora ou sanguessuga pra você ver aquilo roxo, chame! Que nada,” pensava nossa voyeur, “chiques do jeito que essas plantas são e tão delicadas... Se molhar demais, murcham; se molhar de menos, secam do mesmo jeito! Não entendo as orquídeas, tão belas e tão temperamentais. Não se fazem mais plantas como antigamente, isso sim! Todas estragadas em laboratório!”. A menina começou a acomodar as orquídeas no automóvel.
E nossa observadora chegou a ouvir o choramingar de uma das duas: “Ai, vai estragar meu visual! Depressa, depressa!”. Chuviscava. Parecendo entender suas queixas, a menina pôs uma delas sobre o banco da motorista, enquanto buscava acomodar a outra em algum lugar no banco de trás. Nossa voyeur não sabia como fizera a menina, pois as orquídeas foram engolidas por aquele automóvel, por fora tão pequeno e, por dentro, se duvidar, com compartimentos simulando buracos-negros engolidores de bagagens, ainda que fosse um sumidouro temporário só durante o deslocamento. Terminada a operação super-cuidadosa, a menina devolveu o carrinho de compras ao estabelecimento e voltou apressada à sua nave. Talvez essa pressa última tenha sido só por causa da leve chuva... Por todo o tempo que observara sua atuação, em nenhum momento nossa espia percebeu sequer uma ruga de impaciência no rosto da menina. Muito pelo contrário, a menina moveu-se tão devagar durante o carregamento de seu pequeno veículo que, caso tivéssemos que ficar ali o dia todo, por certo não nos entediaríamos com aquela dança mística, quase ritual. Enquanto nossa olheira, em seu posto, aborrecia-se pensando que todo final de ano era a mesma coisa, a menina, ao contrário, parecia estar curtindo cada segundo daquelas compras, e feitas num dia assim tão cinza, chuvoso, ranzinza. O que levou a observadora a pensar que talvez fosse aquele o primeiro Natal da menina em sua casa nova. Talvez por isso lhe desse tamanho gosto sair para comprar enfeites, e pagar com o próprio dinheiro. Quem sabe, estivesse organizando a sua primeira ceia de Natal... Poderia também estar curtindo o primeiro automóvel, a liberdade, a sua licença para dirigir, não só veículos, mas também a própria vida, seguindo a direção que bem lhe parecesse, e sem ter que dar satisfações a ninguém! A menina entrou no carro, pôs o cinto de segurança. Nesse momento, pela expressão dela, nossa observadora achou que parecia pensar: “Ôba, a vaga da frente está livre, nem preciso usar a marcha-ré. Era só ligar o motor, por via das dúvidas olhar para os lados e depois seguir”. O caminho estava livre. Naturalmente, a menina o tomou. Êpa, de repente uma freada. Não brusca, claro, para não afetar o humor das melindrosas passageiras. A observadora notou que a menina arrumava rapidamente alguma coisa no banco do passageiro, a seu lado. Um colete de segurança, uma caixa com um circuito de luzes de Natal... Pronto! Agora poderia seguir. Olhou de novo, por costume de bom motorista, seguiu por menos de dois metros, sinalizou a mudança de direção e começou a ir-se embora, devagar.
E com ela, a menina, foram-se os murmúrios das bolas douradas. E as orquídeas, como estrelas de cinema, em limusines, escondidas, iam pondo em dia, uma para a outra, os últimos lançamentos, coleções e fuxicos do mundo da moda. Talvez, para as orquídeas, tanto faz se havia ou não uma festa de confraternização, voltada principalmente ao comércio, à que muitos chamavam de Natal.

—A peça está em falta! Agora, só ano que vem! Vamos?

Aquela voz grave, o barulho da porta do passageiro se abrindo e em seguida fechando bruscamente, a esperança de que nem tudo seria sempre a mesma coisa, o olhar inquiridor, o sorriso bobo, e nem um anjo..., as mãos frias, a menina indo, o frio lá fora, olhar perdido, o fuxico das orquídeas, o choro das bolas, o vai e vem no estacionamento, e nem um anjo..., a menina sumindo, o frio ali dentro, tudo, tudo aquilo tirando a observadora de seus devaneios e trazendo-a de volta à realidade fria e consumidora daquelas vésperas de Natal...

“Os sinos soarão no dia de Natal!
Os sinos soarão no dia de Natal!

Anunciando:... (?)”


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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Papai Noel


Por Henrique Mendes

Alguém de espírito previdente me enviou um cartão de Natal que já chegou. Por dentro há uma meia dúzia de linhas, com os melhores votos de “boas festas” de um antigo amigo. Por fora, uma imagem deliciosa dumas casinhas cobertas de neve muito branca, com meninos brincando na rua e fumaça saindo pela chaminé.
Sorrio, tocado pelo gesto desse amigo de sempre. Depois de tantos Natais em silêncio, e de tantos outros cumprimentando-me apenas por telefone, resolveu enviar-me um cartão à moda antiga, pelos correios. Reli o texto, e depois voltei à imagem.
Toda a paisagem por trás das casas é uma mata em verde escuro, onde todas as árvores são árvores de Natal, enfeitadas com bolas multicolores, estrelas e luzinhas acrescentando brilhos. Nos céus, lá ao longe, muito pequenino, vem um trenó puxado por renas, com um Papai Noel bem gordinho de braços abertos, como se quisesse, num gesto de plena alegria, abraçar o mundo.
Claro que este é um cartão igual a tantos outros, baratinho, que se pode comprar em qualquer lojinha da cidade. Mas, para mim, recebê-lo foi uma coisa muito especial, que me fez lembrar do tempo em que eu e precisamente aquele amigo que mo enviou brincávamos na porta de casa fazendo bonecos de neve e construindo trenós, que queríamos velozes —tão velozes como imaginávamos que era o trenó de Papai Noel.
Brincávamos na neve, rindo sem parar, até que os nossos dedinhos de criança ficassem roxos de frio, numa espécie de licenciosidade que mães e avós reservam a esses dias, em que a natureza se veste de branco para, mais uma vez, nos conseguir deslumbrar e surpreender.
E dentro de casa havia a lareira acesa, com a meia pendurada, a árvore de Natal cheia de luzinhas e enfeites de todas as cores, as guirlandas nas portas, com as bagas vermelhas de azevinho, as caixas dos presentes dos adultos, ricamente embrulhados, música da época, enfim, todos os detalhes que compõem a mística do Natal.
Havia aquela expectativa imensa, quase palpável, para ver se as cartas que tínhamos escrito para Papai Noel muito tempo antes, com as listas dos presentes que mais desejávamos, tinham sido atendidas —e se os presentes eram aqueles que tínhamos pedido.
De tudo isto me lembrei ao receber este cartão do meu amigo. E agora estou aqui pensando que eu mesmo ainda não fiz nada. Nem lhe mandei um cartão, nem lhe escrevi, nem lhe telefonei, enfim: nada.
Na verdade, custei a arranjar tempo para montar uma árvore de Natal em casa, para que a época não passe despercebida. Mas ainda bem que o fiz, pois este cartãozinho tão simples, que o meu amigo me mandou, veio mostrar-me como é importante cuidar destes pequenos detalhes.
É preciso mantê-los vivos para que a tradição não se perca, e perdure o costume de um dia no ano —pelo menos um dia, no ano —as pessoas olharem o mundo com mais alegria, com mais carinho, serem mais atentas aos detalhes da vida e aos outros, e desejarem-se mutuamente felicidades por se quererem bem. E, por se quererem bem, partilharem mais, dividirem melhor, não apenas os bens materiais, as coisas palpáveis, mas também a ternura e o afeto, bem como a atenção e a alegria. E se, para isso, for necessária alguma imaginação —tanto melhor.
E se ao cuidar dos detalhes e de tudo o que é necessário para conservá-los, fizermos nascer, ou até aumentarmos, o folclore que rodeia a quadra Natalina, isso será excelente. Porque isso é a verdadeira cultura, perpetuando-se, levando-nos a ser capazes de conviver com valores que, apesar de se apoiarem em sonho e fantasia, não podemos deixar nunca que sejam menos reais.
Olho novamente o pequeno cartão que recebi, meio anacrônico nos dias de hoje, meio fora de moda, mas desta vez olho-o com um novo respeito.
Talvez tenhamos de fazer algumas concessões, algumas adaptações, não sei bem.
Talvez seja difícil imaginar Papai Noel descendo pela chaminé para entregar os presentes, quando hoje moramos em apartamentos onde não há chaminés.
Talvez os meninos daqui da cidade estejam certos, quando falam das renas como sendo veadinhos. E é claro que não sentem o menor entusiasmo com o trenó, que não tem rodas e só é capaz de escorregar numa tal de neve, que nunca ninguém viu.
Talvez Papai Noel tenha de vir de charrete. De carroção puxado por bois dourados... e de bermuda, por causa do calor...
Mas, ainda assim, valerá a pena !


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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O Casamento

Por André Aranha


João acordou com seu pai entrando no quarto fazendo festa e abraçando-o. Ainda tonto pelo sono, não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo até seu pai lhe mostrar o jornal do dia dizendo-lhe que havia sido aprovado para o curso de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Fim do Mundo. Naquela época cada universidade fazia sua própria prova e só haviam três formas de ficar sabendo da aprovação. A primeira era esperar a universidade liberar a lista e lutar contra a muvuca para tentar procurar o nome no meio. A segunda era escutar a lista dos aprovados na rádio universidade, que no fim das contas levava uma eternidade. A terceira e última era esperar a lista sair no jornal da cidade. Desligado como era, não sabia com exatidão quando o resultado sairia.
Na semana seguinte João correu atrás da documentação e fez sua matrícula junto com seu amigo Almeida, que também tinha sido aprovado para o mesmo curso. Os dois estavam empolgados para cursar a disciplina de programação de computadores, área em que ambos já tinham um certo conhecimento, dado um tal de MSX que existia na época. Na verdade foi o MSX que os aproximou. Iam juntos para a universidade. Ter que pegar dois ônibus para chegar lá não os desanimava. Depois de ter conhecido o professor deram uma certa desanimada. Parecia que o professor não tinha uma experiência séria na área. Certo dia depois iam atrasados para aula, pois perderam um tempão mexendo no computador novo de Almeida, um tal de 386 DX com tela SVGA, o top de linha da época que poucos tinham o privilégio de ter. Iam calmamente na caminhada de uns trezentos metros entre o ponto de ônibus dentro da universidade e a sala de aula. Estavam uns cinquenta minutos atrasados de uma aula de uma hora e meia quando Almeida perguntou:
—Quando é a primeira prova de programação de computadores?
João olha pro céu tentando lembrar o dia. Olha para Almeida e responde:
—Puta que pariu, é hoje!
Os dois saem em disparada. Chegaram e só tiveram meia hora para fazer a prova. João conseguiu ainda tirar seis. No fim da disciplina ambos acabaram aprendendo que tinham que responder na prova o que o professor queria ler e não o que a experiência tinha ensinado para eles. Foi assim em várias disciplinas.
Já no último semestre João se candidatou para fazer mestrado em três universidades. Duas em São Paulo (Unicamp e USP) e uma no próprio Fim do Mundo, mas no departamento concorrente de seu curso. Foi aceito nas três, mas decidiu ir para a Unicamp, pois era a mais famosa do Brasil. Vendeu o carro velho que o pai lhe dera durante a graduação e foi para lá com a cara e com a coragem. Lá descobriu que o professor da disciplina deixava apenas as alunas orbitarem à sua volta. Outros corpos celestes eram repelidos com violência. Desanimado, ficou lá só para receber uma ajuda de custo dada pela própria universidade e foi para a USP, universidade que a sua falecida mãe sonhava para o filho.
No primeiro semestre na USP João percebeu como seu curso tinha sido fraco; matemática demais e engenharia de menos. Ralou bastante e no fim do semestre conseguiu uma nota A e duas notas B nas três disciplinas que fez. Nada mal para quem se formou no Fim do Mundo. Também no fim do semestre João se mudou para um apartamento de dois quartos que ficava em frente a USP e que iria dividir com um amigo. Não aproveitou muito o novo apartamento após a mudança porque coincidiu com as férias e foi visitar a família no Fim do Mundo. João não sabia o que o esperava em seu retorno.
Trinta dias depois estava de volta. Quando chegou, seu amigo mencionou a vizinha do andar de cima, mas como tinha namorada não deu muita atenção. Dias passaram e um dia, ao voltar da universidade, encontrou-a conversando com seu amigo no apartamento. João e a vizinha se apresentaram.
—Oi, eu me chamo Débora.
—Prazer. João.
Débora era branquinha, tinha cabelos cacheados e era baixinha. Usava óculos, o que lhe dava um ar de intelectual. Era o que o povo chamava de mignon. Nada foi dito no dia, mas se pudessem olhar um dentro do peito do outro veriam que se atraíram como dois imãs gigantes com polos distintos. Além disso, Débora tinha uma característica ímpar, conseguia cativar facilmente todos ao seu redor. Na verdade era um dom, o qual pouquíssimas pessoas têm.
Resistiram. Tentaram ser amigos, mas assim como um avião só consegue resistir à gravidade enquanto tem combustível, acabaram cedendo. À medida que o tempo passava, a vontade crescia como tinha que ser, já diria Renato Russo. Ao final de dois anos namorando foram morar juntos.
Débora trabalhava durante o dia em um escritório de advocacia. O trabalho era puxado, mas como morava próximo ia sempre almoçar na casa da mãe. Ela cuidava da alimentação. Não com exagero, só não era chegada em comer porcaria. Gostava de comida, e muito. Com isso e com um pouco de ajuda da genética matinha seu belo corpo sempre em forma.
Como João morava no andar de baixo ela sempre passava por lá antes de ir para casa. Certo dia de maio ela entrou no apartamento de João e ele estava conversando com sua mãe. Os dois se davam muito bem. A “sogra” costumava dizer que João era o genro que ela mais amava, e considerando que Débora tinha apenas um irmão, isso não deixava de ser verdade. Débora beijou o namorado e a mãe, como de costume, quando João entregou a ela uma pequena caixa preta com uns dez centímetros de largura. Ela abriu e exclamou:
—Brincos de argolas. Que lindos!
João sorri e lhe diz:
—Olhe direito.
Débora olha a caixinha com mais cuidado. Treme e derruba “os brincos”. Ela os recolhe, pula e ri de alegria. Eram, na verdade, alianças. Enquanto Débora extrapolava sua felicidade, ao lado de João a mãe chorava. Sabia que o “genro” amado iria levar a filha do coração para o Fim do Mundo. Decidiram se casar em menos de um ano. Ele bolsista e ela assistente em um escritório, não tinham muita saúde financeira para bancar um super casamento, mas fizeram o que puderam. Contrataram uma recepção para 50 pessoas: familiares e amigos mais próximos. Pagaram o fotógrafo, a decoração da igreja, a gráfica para os convites, a musicista para a igreja e o vestido da noiva. Quase tudo a prestação. Não tinham riqueza financeira, mas tinham algo muito valioso, amigos, que os ajudaram bastante.
No final do ano em que ficaram noivos os dois foram para o Fim do Mundo. Ela iria finalmente conhecer a família dele. Quando chegou no saguão do aeroporto se sentiu um bichinho de zoológico com muitos olhos a analisá-la. Aos poucos foi se acostumando com o jeito esquisito da família dele. Eles fizeram pressão para adiar o casamento. Diziam que era muito cedo, que João só tinha estudado, que precisava ganhar dinheiro. Até o dia em que João se encheu e disse:
—Vai ter casamento e pronto. Larguem de encher o saco!
Acho que João ganhou alguns pontos com Débora, já que ela própria já estava considerando adiar o casamento. Fora a pressão, como diria Carlos Drummond de Andrade, havia uma pedra no meio do caminho. Na verdade duas pedras. Essas duas criaturas, se pudessem, furariam os olhos de Débora e os sugariam com canudinho. Uma das pedras tentou fazer uma emboscada no casal alegando que queria dar uma surra em Débora. A eficiência da comunicação via molecular (“moleque lá”, para os entendidos) frustrou a ação da dita cuja. A outra pedra usou uma abordagem diferente, eu diria que uma abordagem menos agressiva, porém mais traiçoeira, pois tentou ser sua amiga, mas esperta do jeito que Débora era essa tentativa não deu muito certo.
Ao final de dois meses de aventuras e desventuras no Fim do Mundo, Débora voltou para São Paulo para terminar os últimos preparativos para o casamento que seria no dia 10 de março de 2004. Chegou em casa e contou tudo o que viveu para sua mãe como sempre fazia após ficar algum tempo sem vê-la. As duas se entendiam, eram mãe e filha, eram irmãs, eram amigas. Débora descansou um pouco da viagem e começou os preparativos para o casamento no dia seguinte.

* * *

Chegou o dia. Após um dia de noiva maravilhoso, com maquiagem, cabelereiro e tudo que uma noiva merece, Débora se dirigiu para a igreja no carro de um casal de amigos que conheceu através do futuro marido. Ao chegar na igreja descobre atônita que alguém está faltando. Com o coração acelerado pensa que é o noivo. Para seu alívio descobre que o noivo está lá. Ironicamente, quem está faltando é o padre.
—Ai meu Deus. Cadê o bendito padre?
Não tendo outra alternativa, o carro vai dar umas voltas por São Paulo. Vinte minutos depois ela está de volta. O padre, que havia sofrido um contratempo pela pressão alta, já estava na igreja à sua espera. Débora desce do carro. As portas da igreja se abrem e a marcha nupcial começa a ser tocada. João olha para a porta e se deslumbra com a noiva. “Como ela está linda!”, João pensa consigo mesmo. Débora sorri de orelha a orelha e começa seus passos em direção ao altar ao lado do irmão, que iria entregá-la ao noivo quando lá chegasse. A cerimônia é linda; o padre diz belas palavras de incentivo. Emoções aliadas à música e ao clima de felicidade da igreja levam alguns convidados às lágrimas. A recepção é calorosa e divertida. A comida estava excelente. Os docinhos então, nem se fala. Ao abrir o champanhe um amigo do noivo grita:
—Mira na sogra! Mira na sogra!
Após a cerimônia inesquecível os noivos partem para o hotel onde passariam a noite. Dois dias depois voltariam para o Fim do Mundo, onde o marido seria aprovado em um concurso público. Débora realizaria seu sonho e se formaria em Pedagogia, terminando por dar aulas em uma faculdade particular. Seu marido cresceria na profissão. Ambos compram seu primeiro imóvel. Não era o imóvel dos sonhos, mas era o que podiam comprar. De qualquer forma estavam felizes por finalmente terem seu canto. Algum tempo depois João arrumaria um trabalho na Inglaterra e a levaria para morar em Londres onde Débora aprende inglês. Os dois viajam pela Europa tendo a lua de mel que na época do casamento não puderam ter. Conheceram a França, Portugal, Itália e Alemanha. Na França viveram o romantismo. Em Portugal, a gastronomia. Na Itália foram roubados. E na Alemanha conheceram a encantadora Little Bee, ou abelhinha, que ouvia em Português com atenção, contudo respondia em Alemão. Era o que se chamava de comunicação unidirecional, mas isso não importava de verdade, no final das contas o que importava mesmo era o amor que aquela criaturinha conseguia emanar; nisso a comunicação era nas duas direções, e, ao mesmo tempo. Era o que se chama na engenharia de comunicação de full-duplex. Foram dois anos incríveis que ambos não queriam que acabasse.

* * *

Débora acorda em um quarto branco que não reconhecia. Ao se virar, vê que uma pessoa lê o jornal do dia próximo a sua cabeceira. Débora olha para a data no jornal e lê 10 de março de 2014. Ainda tonta e meio desorientada ela senta na cama. A pessoa que lia o jornal ouve um ruído e olha em sua direção. Era sua mãe. Cambaleante, Débora tenta se levantar. A mãe se aproxima e a abraça. Feliz de estar com a mãe e sentada na cama começa a lhe contar o que viveu no tempo em que não a viu. A mãe ouve tudo em silêncio. No final da história segura a mão de Débora que vê a aliança em seu dedo e imediatamente pergunta:
—Mãe, cadê o João?

A mãe, com um olhar compadecido, pensa se deveria recordar à filha, ou não, que João havia morrido num acidente de avião, justamente quando vinha para o casamento.






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