terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Último Pedido


Por Michele Calliari Marchese

A Dona Luisa era a dona do único bar que tinha na cidade e o mantinha com pulso firme e com a espingarda em cima do balcão. Ninguém negava contas ou pedia fiado e tampouco ela deixava que bebessem além da conta, pois que não admitia que um homem gastasse todo o seu dinheiro em cachaça e — imaginava ela — chegasse em casa sem nenhum tostão no bolso, fazendo com que mulher e filhos passassem necessidade.
O local estava sempre cheio e num sábado à noite quando estava prestes a fechar o bar, entrou um homem vestindo terno e gravata. Dona Luisa quase teve uma síncope diante daquela visão do seu passado. Era o Inácio.
Ele sentou numa cadeira e esperou. A Dona Luisa quase não podia mexer-se e ajeitando os cabelos numa tentativa frustrada de parecer-lhe mais bonita foi até lá e pediu-lhe o que queria e então ela olhou para os cabelos brancos bem penteados dele e sentiu o perfume de sempre a reavivar seu corpo já decaído. Trincou os dentes para que ele não escutasse um suspiro solto e teve que confirmar o que ele tinha pedido. Batata doce? Era isso mesmo?
“Sim”, disse numa voz de homem velho que talvez estivesse esperando aquele doce para despedir-se da vida. Era uma voz forçada, suada, nervosa. A Dona Luisa lhe respondeu então que não era época de batatas doces e ele então lhe avisou que fechasse a porta, porque, velho daquele jeito não podia pegar a friagem da noite.
Dona Luisa estava à mercê daqueles olhos tomados pela catarata e que continuavam com o mesmo brilho de quando ele a deixou. Mandou alguns fregueses embora sem deixá-los terminar o que estavam fazendo, fechou a porta e esperou. Estava ainda de costas para as suas lembranças quando o silêncio pesou tanto em seus ombros que se obrigou a virar. Permaneceu em pé com as mãos cruzadas na barriga, encarando com altiva postura aquele homem de outrora, aquele único em seu coração.
Foi quando sentiu um vento gelado entrando pela fresta da porta, o mesmo frio que sentiu há 40 anos. Era o frio de um novo abandono. E ouviu ele lhe dizendo sentir saudade da batata doce que só ela sabia fazer e ela lhe repetiu não serem épocas da batata, mas eram épocas de respostas para serenarem os sofrimentos da alma.
O Inácio convidou-a a sentar, “estou velho” lhe disse. Ela também. “Estou morrendo”, tornou a dizer. Ela lhe respondeu estar morta desde aquele sábado em que tinha ficado de fora da igreja esperando-o aparecer.
E Dona Luisa começou a chorar lágrimas sufocadas pela ausência dele, e também aquelas outras lágrimas que tiveram que ser retidas quando o pai expulsou-a de casa diante da gravidez escondida.
“E o menino?” Perguntou-lhe Inácio. Ela não respondeu. Que pouco se daria ele saber que sexo tinha o filho ou se estava vivo ou não? Deixou morrer em seus lábios aquela explicação que ele nunca se dera ao trabalho de saber e ficou imersa em recordações antigas, gastas já de tanto lembrar para que dali tirasse as forças que precisava para continuar vivendo por bem ou por mal.
O Inácio disse-lhe que queria deixar algum capital para o filho dela, para mostrar que nunca tinha esquecido e para que ela tivesse piedade em conceder-lhe um pedacinho só da batata doce, que bem ele sabia, estava em algum pote numa estante qualquer.
Ela se lembrou do seu vestido de casamento que estava guardado até aquele dia numa caixa de madeira, debaixo da cama. Tinha botões de madrepérola e era enfeitado com pequeninas flores de laranjeira. Despiu-se do vestido e guardou-o numa mala com os poucos pertences que o pai deixara-lhe pegar. Pensou que passou a vida ouvindo o choro da mãe que nada pôde fazer naquele momento de perdas e sofrimentos. Saiu com o filho na barriga e nunca mais voltou. E agora o Inácio estava ali, pedindo-lhe batata doce.
Resolveu que não gastaria palavras e tampouco objeções às atitudes desvairadas que ele tivera no passado, mas lhe fez aquela pergunta que a afligiu por toda a vida: “Inácio, algum dia você me amou?” Queria poder contar ao filho que ele estivera ali arrependido e querendo conhecê-lo, mas não houve resposta. O que houve foi um pedido de desculpas seguido de um suspiro prolongado e de um cair de braços, lento, mitigado.
Deitou o homem no chão do bar e foi até a cozinha, pegou o pote com a batata doce e depositou em seu colo e ajustou as mãos para ficarem cruzadas sobre ele.
Arrumou seus parcos pertences dentro daquela caixa de madeira, onde dormitava o velho vestido de noiva e foi embora sem olhar para trás.

Avisaria a família do morto, depois que as batatas apodrecessem.



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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Urso



Por Rodrigo Arcadia

— O bicho, no limiar do entardecer, espreguiça na árvore. Com os braços, abraça e ruge. Não é rugido de raiva, tristeza ou revolta. É de satisfação, de abraçar gozando prazer, o que para mim era incompreensível.

Meu avô, quando vivo, recontava essa parte. Contava a história do urso da montanha, que descia no limiar do entardecer para abraçar a árvore.

Vovô morreu e jamais conseguiu ao menos dar um disparo no animal. Faleceu dizendo que a jornada havia chegado ao fim.

O conflito do animal com meu avô começou na idade dos 18 anos, ao descobrir a intimidade que o outro tinha com a árvore.

Tal cena possibilitava acabar com a fera. O animal, parado e indefeso, e o dedo pulsando, esperando o puxar do gatilho.

— O olhar tinha mistura de feitiço ou sei lá o que. Dava pavor. Não eram olhos de urso. Eram olhos humanos.

Assim vovô, com covardia e raiva, desistia.

No grupo de caçadores, no qual se incluía seu pai, por reclamações constantes tomaram a decisão de excluí-lo. Meu avô tinha seus 28 anos.

Envergonhado de ser chamado de covarde e mulherzinha pelo pai, tomou a missão na vida: matar o urso da montanha.

Ao completar 31 anos, casou com vovó, moça dez anos mais nova. Empenhado na caça, nunca reparou na esposa, nem sentiu amor ou paixão. Também não teve nada pela filha, minha mãe.

Vovó compreendia ou disfarçava. Às vezes, mamãe via lágrimas no rostinho da coitada. Mulher forte, dizia mamãe.

Para ele, a vida era ele e o animal. A esposa e a filha eram desenhos apagados da existência.

Aos 38 anos, o pai faleceu. No leito de morte, nunca perdoou o filho pela humilhação sofrida, e após isso a expulsão do grupo.

 Sentiu-se culpado. Ou melhor, culpou o coitado do bicho. Um disparo. Faltou o disparo.

Com 42 anos, quase conseguiu pegar a fera. Quase, a bala acertou a árvore.

– Nos encaramos por dois minutos. Eu tremia. Tentei não encarar os olhos. Aquilo arrepiava. Moveu a cabeça, soltando os braços.
“Morrerá, maldito, morrerá!”
Puxei o gatilho. O maldito correu. Emprenhou-se na floresta, perdendo-se na escuridão.

Para a vida de desgosto e azar, o culpado era o urso. Até a falta de amor pela esposa e a filha.

Os 45 anos foram marcados com a saída da minha avó. Cansada, escreveu uma carta explicando a saída, levando minha mãe.

Porém, arrependida, voltou três dias depois. Pediu perdão. Desorientado, nunca pronunciava palavra alguma com vovó. Com o passar, entendeu o desgosto da mulher, a ausência com a família.

Quando nasci, meu avô era homem velho. Sequer junto da esposa, quando essa faleceu.
Posso dizer que mamãe o culpou.
Agora não era somente o pai. Era esposa e filha. Talvez vovó não. Com o andar dos tempos, entendeu a missão. Mamãe não perdoava.

Com o meu nascimento, permanecia mais na casa. Saia pouco, para caçar o maldito. Feriados, comemorações, chuva, frio, sol, lá ia com a espingarda.

Presenciava sua raiva, frustração em não conseguir seu objetivo.
Com minha presença e vendo-me mocinho, talvez enxergasse como substituto.

Foi aí, com meus 12 anos que soube das histórias. Orgulhoso narrava as caçadas. Narrava detalhes, sem se esquecer dos perigos. Contava com a intenção de me influenciar, para que eu fizesse parte dos caçadores da família.

E mamãe brigou. Briga feia. Expliquei que não seria igual. Não sairia a caçar animal nenhum. Adorava ouvir a história, adoráveis no meu conceito.
E chegou a hora que meu avô largou a espingarda.
No entanto, quem avisou foi o urso:

 – Vá descansar, velho homem. Seu tempo de caçada terminou. Guarde a arma. Sua missão e dívida estão encerradas.
Disse que as palavras vieram do animal, que o encarou com os olhos humanos.

Viu a vida que perdeu. Percebeu que a filha dera-lhe um neto e amava-o. Mesmo tendo tentado influenciá-lo.

— Não sirvo pra mais nada. Pra que presto, senão pra caçar?

Não sei se as palavras foram disparos certeiros. Mas surtiram efeito. E acordaram-no, fazendo-no entender o que perdera.

— Só hoje sei do meu erro….

Vovô teve mais um ano de vida. A tristeza e a depressão levaram-no à morte.
Hoje, passado alguns anos relembro dos detalhes. Não moramos mais na antiga casa, mudamos para perto do centro.

Tenho um fato a contar, que até hoje permanece na minha mente.

Saí e, caminhando, fui encontrar com o bicho. Não portava arma, uma curiosidade me invadiu.
E lá estava: o  animal velho, fraco e cansado. O urso envelhecera. Com carinho e dificuldade enlaçou a árvore. Despedida, abraço final.

Encostou a cabeça no tronco e deslizou o corpo no chão. Virou a cabeça e me encontrou. Fixou seu olhar e pude ver os olhos humanos. Também me senti estranho, arrepiado. Rugiu. Rugido cansado.

O limiar do entardecer apontava e olhando-me, disse:
— Minha jornada se encerra. A vida se encerra….
Suspirou. O último suspiro.

Os braços soltaram-se. As folhas caindo no corpo. Muitas, muitas folhas caindo. Encobrindo o velho urso, ou enfeitando-o. Depois, as folhas vizinhas caíram, prestando homenagem ao animal, fazendo-se de túmulo.


Ali descobri que o homem e o animal não eram inimigos. Eram amigos. Só não sabiam explicar o que sentiam um pelo outro.



Em áudio também (clique aqui).


Nota: Assumimos que este texto se trata de ficção, ou seja: assemelha-se à realidade mas não se refere a pessoas e fatos do mundo real nem emite sobre eles juízo ou opinião. Ele nos foi enviado para publicação pelo(a) próprio(a) autor(a), sendo aqui reproduzido conforme o original recebido, tendo sido levemente editado. É de autoria e inteira responsabilidade do(a) autor(a), que detém sobre o mesmo todos os direitos autorais. Este texto não representa, necessariamente, a opinião das editoras e de outros autores deste site.

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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O bugreiro


Por Michele Calliari Marchese

“Não volto para casa nunca mais.” Foi o que o Aldir disse à família quando ficou enfezado por alguma bobagem que nem ele se lembrava. Ante os olhares embasbacados da esposa e dos filhos pegou uma malinha de mão, colocou dentro algumas mudas de roupa, pegou os chinelos e fechou a porta de supetão.
Todos ficaram inertes com a inesperada partida do homem. Para onde iria? E por que tanta irritação? Pois o Aldir era assim, enfezado, irritado e por qualquer coisa emburrava em algum canto da casa ou no porão. Passava dias sem falar e abria a boca somente para comer e dar ordens ou para reclamar de algum serviço mal feito.
Acontece que a família sentiu uma espécie de alívio, mas ao mesmo tempo pesar, pois que poderia acontecer o pior durante a viagem dele.
O Aldir não viajou e a esposa descobriu no dia seguinte que o homem estava em cima de uma árvore e só descobriu porque ele lhe jogara os chinelos sujos para que ela lavasse. Pois não era que o dito cujo tinha se enfiado no meio dos galhos de um bugreiro? E o que mais deixou a mulher irritada foi que vislumbrou uma rede de dormir, guarda chuva e uma pequena estante pregada no tronco maior.
Estava lá o bendito de mala e cuia. E não tinha esquecido o rádio. Foi então que uma coceira tomou conta do corpo da esposa e quase não pôde pegar os chinelos por causa de tanta vontade de se coçar. Saiu correndo para se lavar e depois foi até uma vizinha se benzer e desabafar o ocorrido.
A vizinha já sabia de tudo, porque numa gritaria do Aldir para que o filho tirasse direito o leite das vacas, foi que ela viu de onde vinham as ordens. Tentou acalmar a esposa do homem e lhe disse que decerto logo ele desceria, pois que o bugreiro dá alergia em todo mundo que passa perto ou encosta nele. Devia estar se coçando como o diabo. E a esposa lhe respondeu que enfezado do jeito que ele era, era bem possível do homem não ser alérgico à árvore.
Dito e feito. Além de não ser alérgico, ele estava gostando da nova morada. Poderia descer quando quisesse e deixar as roupas sujas para pegar roupas limpas. Tomaria banho na sanga quando lhe aprouvesse e não ouviria mais os xingamentos da mulher lhe dizendo que estava fedido. Era a liberdade.
Poderia também ficar vigiando para ver se o namorado da filha apareceria em horário suspeito. E lembrou-se que tinha de pegar a espingarda se caso precisasse dar um susto no rapaz. Para o leva e trás ele deixava uma caixinha pendurada numa engenhoca de roldanas que ligava o galho onde morava à janela da cozinha. Deixava lá de noite e buscava quando tudo o que tinha encomendado estava na caixa e gritou para o filho mais velho que não se esquecesse da arma, que não precisava dar explicações e que obedecesse, caso contrário tiraria lasca do bugreiro e colocaria em suas ceroulas.
Obviamente que o filho obedeceu, pois conhecia as explosões de vingança do pai.
Os dias passaram e do verão somente a lembrança e o arrependimento de abandonar uma cama quente por uma rede úmida. Tudo lhe pesava nos ossos. O subir e descer, a sujeira do corpo, a barba comprida que espinhava a boca, os atrapalhos na hora de tirar o pijama, enfim, tudo o que pode acontecer em cima de uma árvore, que com certeza não aconteceriam dentro da casa.
E o orgulho, onde deixaria? Não tinha dito que não voltaria jamais? Pensou e coçou a cabeça. Piolhos. Era só o que faltava mesmo. Mas também serviria de desculpa, já que estava no meio de um bugreiro.
Desceu.
Bateu na porta de entrada se coçando todo e gritando para que abrissem imediatamente porque iria morrer. Ninguém lhe deixou entrar, mas para o Aldir pareceu que ninguém havia escutado seus pedidos. Aguardou com impaciência a hora que todos acordassem para entrar e tratar dos piolhos ou o que quer que fosse. E recomeçou a se coçar, da planta do pé até o couro cabeludo e aquilo lhe doía mais que o orgulho ferido, e notou que manchas começaram a sair por todo o lugar. As mãos estavam cansadas de tanto esfregar a pele e tinham que continuar esfregando em outro lugar, porque a coceira era insuportável.
Quando a família abriu a porta para deixar o homem entrar, ele deu meia volta e voltou para o bugreiro, chegando lá a alergia parou. Tomaria banho na sanga no dia seguinte para se livrar dos piolhos e tentaria voltar para casa, mas quando ameaçava descer da árvore as coceiras recomeçavam.


Nunca mais pôde descer. Todos se acostumaram com o acontecido e quando faleceu, trinta anos depois, foram os netos a lhe descer da árvore içado em uma corda, meio estrangulado, meio torto, quase caindo. Tinham cavado um buraco ali mesmo no pé da árvore para que fosse enterrado em sua última moradia. Quando taparam a cova e fincaram uma cruz de madeira em sua cabeceira, o bugreiro secou.






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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Coronel Manoel dos Passos Maia - Prefácio

Por Michele Calliari Marchese

Era um sábado de manhã, quando minha irmã me perguntou: “Estacionamos na Passos Maia?”, respondi com outra pergunta: “Quem foi Passos Maia?”

Ela nem me olhou, apenas estacionou numa das maiores avenidas centrais que temos em nossa cidade. Aqui em Xanxerê, ou Campina da Cascavel, para quem está mais acostumado com esse termo.

Propus-me um estudo e muitas consultas para dar de cara com pouquíssima ou quase nenhuma informação. De Chapecó (Passos dos Índios) a Joaçaba (Cruzeiro do Sul) consegui apenas dois volumes com dados políticos, econômicos e de desenvolvimento do Oeste de Santa Catarina. Mas que, com cuidado esmerado pude resolver uma questão crucial: de onde veio, o que fez, por que fez e para onde foi. Terminadas todas as leituras, notei que estava no mês do seu falecimento: junho — e não perdi mais tempo.

Já tinha assunto para um conto. Restava-me saber sobre a pessoa, e descobri que tão perto de mim havia informações preciosas e precisas. Meu pai dizia que o pai dele (meu avô) era muito amigo do Passos Maia, e descreveu-me façanhas de homem bom, de homem que escuta e tenta resolver qualquer tipo de imbróglio, inclusive sobre relacionamentos. Era um psicólogo, um altruísta.

Apaixonei-me pelo idealismo dele, tão difícil hoje em dia. Apaixonei-me pelos cuidados dispensados àquela gente desbravadora que estava por aqui a seus cuidados, e também pela sua trajetória política.

O conto é ficção.

A trajetória política narrada é baseada em atas da Superintendência do Município de Chapecó, quando esse ainda englobava todo o Oeste de Santa Catarina.

Aproveitem a leitura e conheçam o Coronel Manoel dos Passos Maia.


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Um Grande Estadista - Parte I

Por Michele Calliari Marchese


Comemorativo aos 51 anos da morte de Cel.Passos Maia


Abotoou o pijama com uma pressa de morto. Não tinha mais a agilidade de outrora e havia muito os dedos quase não lhe obedeciam ao comando. Apoiou-se na bancada da pia, recurvou-se e fechou os olhos. Estava velho e com frio.

Não conseguiu precisar o tempo que passou assim, mas a mulher o arrancou de seus devaneios com um toque no ombro. Pediu se passava bem e se precisava de alguma coisa e ele lhe sussurrou que agora nada lhe faltava, mas antes sim. Tudo lhe faltou.

“Esqueça”, lhe disse a esposa. “O que passou, passou. Você fez mais do que qualquer um poderia ter feito e hoje pode orgulhar-se de suas atitudes. Seu nome é lembrado em ruas, no colégio que construímos e naquele distrito perto de Ponte Serrada”.

“Mas foi pouco”, sentenciou o homem.

“O tempo passará e sequer saberão por que aquele lugar tem meu nome.”

A esposa suspirou, conhecia os rompantes depressivos do marido e chamou para dormirem. Ele nem lhe respondeu. Vestiu um casaco e foi para fora da casa. Pensou que no Natal daquele ano faria 75 anos e sentiu o frio gelar a sua alma. O céu sempre é mais estrelado no inverno e lembrou-se que dormia ao relento quando liderou o Batalhão Marechal Bormann em defesa do governo federal e de seu amigo Artur Bernardes. Tinha juntado 280 homens. Eram muitos, mas pensou melhor e achou que eram poucos. Poderia ter se esforçado mais, mesmo que não houvesse uma população tão expressiva naqueles anos.

Foram 24 anos de lutas incessantes para fomentar o progresso no Oeste Catarinense e nem por isso descuidou-se de sua família, dos caboclos que vinham lhe pedir dinheiro emprestado e lembrou-se daquele momento em que, sem dinheiro para pagar o colégio da filha, tinha pedido dinheiro emprestado a um comerciante local e não pôde recusar-se em dá-lo todo àquele homem necessitado que o abordara na ponte que tinha construído em Joaçaba. Lembrava exatamente das palavras do infeliz: “Cel., eu ia procurá-lo para lhe pedir quinhentos mil réis”.

“Dei um jeito e paguei o colégio depois”, pensou e remexeu-se na cadeira. Foram tempos difíceis.

E a sua memória começou a borbulhar como num filme, e as imagens sucediam-se sem misericórdia em sua frente, seus olhos lacrimejaram com o frio e foi justamente naquela época em que a Sede Municipal era trocada em lombo de mula de Xanxerê para Passo Bormann e vice versa que ele chegou à região.

Não poderia imaginar que um simples pedido do governador Hercilio Luz pudesse resultar no seu ingresso político de desenvolvimento. Tinha sido quando? Quase lhe faltava a memória, mas com um estalar de dedos, acabou dizendo em voz alta: “1918, claro.”

Ele viu todas as mudanças da Sede Municipal nas quatro vezes que aconteceram: A primeira vez foi em 1919, logo após o acordo de Limites em que especificava que a Campina da Cascavel pertencia ao Estado de Santa Catarina e não ao Paraná.

Veio com a família colonizar a região, fora um homem decidido e cheio de coragem para desbravar a terra que tanto amou. Carismático, por onde passava juntava uma turba de admiradores e então, não soube como foi nomeado Delegado especial do Governo do Município de Chapecó e depois Superintendente. Foi uma pena não ter podido participar da emancipação de Xanxerê em 1953. “Por onde andará meu amigo, o major João Simões Cavalheiro”? Pensou, e entristeceu-se. “Decerto que morto”. Fazia muito tempo que não tinha notícias dele.

Lembrou-se do Partido Republicano e de seus fiéis e incomensuráveis amigos. Leais era a palavra certa. Aquela era a sua terra, a sua gente. Agora ele estava velho, numa cidade grande, longe, seus amigos mortos. Tinha se mudado porque aconteceu de se mudarem e porque tinha se desgostado da política. Aquela política que fez não existia mais.

Resolveu deitar-se. Sabia que não dormiria, mas decerto esquentaria os pés gelados.


*** Continua na próxima postagem ***






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Um Grande Estadista - Parte II

Por Michele Calliari Marchese

Comemorativo aos 51 anos da morte de Cel.Passos Maia


Havia geado na calçada naquela manhã e o termômetro pendurado na parede acusava -2,3º. Estava tão frio que não se arriscou em sair. Esperou a esposa preparar o café e numa concordância com a morte, tentou viver mais um restinho e desabafar tudo, para que ela não se esquecesse de contar aos netos quem tinha sido o avô deles. Que era para terem orgulho quando pronunciassem seu nome. Que não tinha feito as coisas em vão.

Contou numa voz rouca e ressentida sobre a surpresa ao saber do piquenique oferecido em sua homenagem no começo de 1921, foi uma demonstração de carinho do povo de Xanxerê e Passo Bormann que ele guardou em seu coração. Lembrou-se que tinha mais de 400 pessoas que ovacionaram seu nome ao vento, e então ele chorou.

Aceitou a candidatura para Superintendente Municipal de Chapecó, não admitia publicamente, mas ela era acalentada como a um bebê em noites suaves. Venceu em 1921. Conheceu homens corruptos e tratou de banir o banditismo exacerbado da região. Conheceu homens de índole irretocável e foi o grande articulador da visita de Abelardo Luz, filho de Hercilio Luz à região. Arranjou uma recepção de 500 cavaleiros em Goio-En para esperar tão influente autoridade. As festas foram lautas e lambeu os lábios cheios de açúcar da xícara de café. A esposa recordava de tudo muito bem, afinal, os festejos em honra a Abelardo Luz e consequentemente ao marido duraram uma semana.

O que mais o incomodava eram as trocas da Sede Municipal. Era uma briga entre as vilas de Passo Bormann e Xanxerê e que por fim, não ficou nem em um, nem em outro lugar e sim em Passos dos Índios. “Menos mal, acabou com a briga”.  Mas tinha sido deposto naquela ocasião. Quanta miséria aquela Revolução de 1930.

“Nessa época já morávamos em Joaçaba, lembra”? Disse-lhe a mulher para a confirmação da vida deles juntos.

Claro que lembrava. Lembrava-se de tudo, nos mínimos detalhes. De todos os telegramas, de todos os discursos, de todas as lutas. Tinha sido eleito prefeito de Joaçaba em 1926 e em seu governo construiu o primeiro Grupo Escolar que levou o seu nome, o edifício dos Correios e Telégrafos, o edifício da prefeitura e que ele soube que foi incendiado 15 anos depois. Foi uma tragédia sem precedentes. Era capaz de escutar os gritos da população em desespero.

A esposa comentou que naquela época eles tinham caminhado de casa em casa angariando fundos para a construção da Igreja Matriz e em contradição à esse ato ele comandou as forças do Quartel de Herval para o Levante Constitucionalista de 1932. Tudo em vão. Esse levante lhe rendeu uma prisão em Florianópolis, depois no Rio de Janeiro e dali seria mandado para o exterior.

Mas tinha amigos. E era a eles que devia o retorno são e salvo. Foi eleito novamente prefeito em Joaçaba, mas licenciou-se e repetiu a sentença dita na noite anterior. “A política que fiz, não existe mais.”

Abandonou a vida pública, a política e pensou em Santos Marinho, aquele seu primeiro adversário político de Passo Bormann, nos idos de 1921. Tinha morrido em franca decadência política justamente no ano em que se elegeu Superintendente. Não morreria como ele. Mas morreria esquecido.

Fechou os olhos para nunca mais abri-los em 16 de junho de 1962, mas ainda pôde ouvir o choro dos seus e as palavras da mulher em seu ouvido: “Você foi e sempre será um grande estadista.”

Conto de ficção.

Cel.Manoel dos Passos Maia nasceu em 25/12/1887 em Jaguarão - RS. E faleceu em 16/06/1962 em Curitiba-PR.
Eleito Superintendente de Chapecó em 1921.
Eleito Prefeito de Joaçaba em 1926 e 1935.
Eleito Deputado Federal em 1934.
Passos dos Índios é o atual município de Chapecó – SC.
Distrito de Cel Passos Maia (pertecente à Ponte Serrada-SC) em 1960 cuja emancipação em 1991 mudou o nome para Passos Maia.
Escola Municipal Cel.Passos Maia em Joaçaba – SC, atualmente com as atividades encerradas.
Rua Cel.Passos Maia em Xanxerê – SC
Rua Cel.Manoel dos Passos Maia em Chapecó - SC
Trajetória política de Cel. Manoel dos Passos Maia inspirada no Livro “Santos Marinho e Passos Maia: A política no velho Chapecó (1917-1931)” de Eli Maria Bellani. Agosto, 90. UNOESC. E no Livro: Cinquentenário de Joaçaba – Edição 1966, Prefeitura Municipal de Joaçaba –SC.

Agradeço a: Almir Felipetto (Joaçaba-SC), Luiz Carlos Becker (Chapecó-SC),  e Osmar P. Calliari (Xanxerê – SC). Sem eles esse conto não seria possível.




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