terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Último Pedido


Por Michele Calliari Marchese

A Dona Luisa era a dona do único bar que tinha na cidade e o mantinha com pulso firme e com a espingarda em cima do balcão. Ninguém negava contas ou pedia fiado e tampouco ela deixava que bebessem além da conta, pois que não admitia que um homem gastasse todo o seu dinheiro em cachaça e — imaginava ela — chegasse em casa sem nenhum tostão no bolso, fazendo com que mulher e filhos passassem necessidade.
O local estava sempre cheio e num sábado à noite quando estava prestes a fechar o bar, entrou um homem vestindo terno e gravata. Dona Luisa quase teve uma síncope diante daquela visão do seu passado. Era o Inácio.
Ele sentou numa cadeira e esperou. A Dona Luisa quase não podia mexer-se e ajeitando os cabelos numa tentativa frustrada de parecer-lhe mais bonita foi até lá e pediu-lhe o que queria e então ela olhou para os cabelos brancos bem penteados dele e sentiu o perfume de sempre a reavivar seu corpo já decaído. Trincou os dentes para que ele não escutasse um suspiro solto e teve que confirmar o que ele tinha pedido. Batata doce? Era isso mesmo?
“Sim”, disse numa voz de homem velho que talvez estivesse esperando aquele doce para despedir-se da vida. Era uma voz forçada, suada, nervosa. A Dona Luisa lhe respondeu então que não era época de batatas doces e ele então lhe avisou que fechasse a porta, porque, velho daquele jeito não podia pegar a friagem da noite.
Dona Luisa estava à mercê daqueles olhos tomados pela catarata e que continuavam com o mesmo brilho de quando ele a deixou. Mandou alguns fregueses embora sem deixá-los terminar o que estavam fazendo, fechou a porta e esperou. Estava ainda de costas para as suas lembranças quando o silêncio pesou tanto em seus ombros que se obrigou a virar. Permaneceu em pé com as mãos cruzadas na barriga, encarando com altiva postura aquele homem de outrora, aquele único em seu coração.
Foi quando sentiu um vento gelado entrando pela fresta da porta, o mesmo frio que sentiu há 40 anos. Era o frio de um novo abandono. E ouviu ele lhe dizendo sentir saudade da batata doce que só ela sabia fazer e ela lhe repetiu não serem épocas da batata, mas eram épocas de respostas para serenarem os sofrimentos da alma.
O Inácio convidou-a a sentar, “estou velho” lhe disse. Ela também. “Estou morrendo”, tornou a dizer. Ela lhe respondeu estar morta desde aquele sábado em que tinha ficado de fora da igreja esperando-o aparecer.
E Dona Luisa começou a chorar lágrimas sufocadas pela ausência dele, e também aquelas outras lágrimas que tiveram que ser retidas quando o pai expulsou-a de casa diante da gravidez escondida.
“E o menino?” Perguntou-lhe Inácio. Ela não respondeu. Que pouco se daria ele saber que sexo tinha o filho ou se estava vivo ou não? Deixou morrer em seus lábios aquela explicação que ele nunca se dera ao trabalho de saber e ficou imersa em recordações antigas, gastas já de tanto lembrar para que dali tirasse as forças que precisava para continuar vivendo por bem ou por mal.
O Inácio disse-lhe que queria deixar algum capital para o filho dela, para mostrar que nunca tinha esquecido e para que ela tivesse piedade em conceder-lhe um pedacinho só da batata doce, que bem ele sabia, estava em algum pote numa estante qualquer.
Ela se lembrou do seu vestido de casamento que estava guardado até aquele dia numa caixa de madeira, debaixo da cama. Tinha botões de madrepérola e era enfeitado com pequeninas flores de laranjeira. Despiu-se do vestido e guardou-o numa mala com os poucos pertences que o pai deixara-lhe pegar. Pensou que passou a vida ouvindo o choro da mãe que nada pôde fazer naquele momento de perdas e sofrimentos. Saiu com o filho na barriga e nunca mais voltou. E agora o Inácio estava ali, pedindo-lhe batata doce.
Resolveu que não gastaria palavras e tampouco objeções às atitudes desvairadas que ele tivera no passado, mas lhe fez aquela pergunta que a afligiu por toda a vida: “Inácio, algum dia você me amou?” Queria poder contar ao filho que ele estivera ali arrependido e querendo conhecê-lo, mas não houve resposta. O que houve foi um pedido de desculpas seguido de um suspiro prolongado e de um cair de braços, lento, mitigado.
Deitou o homem no chão do bar e foi até a cozinha, pegou o pote com a batata doce e depositou em seu colo e ajustou as mãos para ficarem cruzadas sobre ele.
Arrumou seus parcos pertences dentro daquela caixa de madeira, onde dormitava o velho vestido de noiva e foi embora sem olhar para trás.

Avisaria a família do morto, depois que as batatas apodrecessem.



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