terça-feira, 11 de março de 2014

O livro misterioso


Por Michele Calliari Marchese

Foi quando o Dario chegou de sua longa viagem estigmática. Trouxe consigo um livro deveras misterioso, cheio de letras que não se era capaz de lê-las sem percorrer um longo arrepio pelo corpo, letras desconhecidas com gravuras pintadas a mão por todas as folhas. Eram coisas incompreensíveis e inacreditáveis.
Pois que era visível o transtorno do Dario ao doar o dito livro para o prefeito fazer uso dele quando houvesse alguma escola na Campina. Podia lê-lo se lhe aprouvesse e se fosse capaz de entender o que ali estava escondido. Eram coisas espetaculares, explicava o homem à autoridade, eram coisas que faziam um homem adoecer da cabeça se não tivesse o equilíbrio necessário para a empreitada. Tinha que ler e esquecer.
O prefeito ficou lisonjeado com aquela manifestação de estima e confiança e quase não ouvia as palavras do viajante quando tocou com os dedos a capa daquele livro. Era lindo, não se podia dizer em palavras o que o toque lhe proporcionava, uma onda de prazer irrestrito, suado, um amor sem limites e puro. Arrastou os dedos por sobre as letras douradas e ilegíveis e um torpor sacudiu a sua alma e não ouviu quando o Dario mandou tomar cuidado.
Ele ficou horas acariciando-o, sem abri-lo, sentindo um aroma suave de flores que exalava daquelas palavras em ouro que o chamavam para uma leitura urgente. Passou-se tanto tempo que a mulher resolveu ir ao escritório do marido para saber o que lhe acontecia e o encontrou tão submerso nas páginas daquele livro desconhecido que o deixou lá. Nunca tinha visto o marido ler tanto e por tanto tempo. Achou bom e foi jantar.
Deu pela falta do marido quando foi se deitar e depois quando acordou no dia seguinte e depois mais quando era a hora do almoço e também na sesta da tarde e no café das cinco e então ficou preocupada. Havia algumas pessoas na porta de sua casa à espera do prefeito que não atendeu nenhuma e sequer ouviu que havia gentes por lá. Interessava-lhe somente aquele livro maravilhoso que não se entendia patavina, mas que era impossível desgrudar os olhos dele e as mãos também.
Passaram-se muitos dias e o prefeito definhava a quem o via, pois que não era visto em lugar algum. Estava com a mesma roupa do dia da visita do Dario e cheirava a suor e tinha o semblante daqueles que suspiram o último ar da vida.
Teve que ter a intervenção do delegado e do Padre Dimas; enquanto um lhe chamava a atenção o outro tentava roubar o livro de suas mãos trêmulas. Depois que o prefeito chorou, esperneou e por fim se rendeu aos apelos dos amigos, entregou o livro com a alma dilacerada de dor.
O Padre pegou o livro com a batina e sequer olhou para aquilo que brilhava à sua frente num apelo quase insano. Resistiu e o escondeu enrolado na camisa do prefeito que ele havia tirado naquele momento de loucura. Mandou que o prefeito se recompusesse, já que estava nu, e que se alimentasse e que tomasse banho e que respondesse quem havia lhe entregado aquilo.
Todos ficaram assustados quando o prefeito se assustou com a sua condição, como se não houvesse acontecido nada e lhes respondeu com a boca seca da falta de água que o Dario tinha recém saído dali e fora ele quem tinha dado aquele livro que ele não se lembrava de ter visto nem a capa.
Oras! A mulher quase teve um enfarto diante do relato do marido e disse ao Padre que o Dario tinha aparecido há uma semana e se lembrava de tudo direitinho porque tomou um café com ele antes de partir. Disse também que o problema que aconteceu se devia àquele livro dos diabos porque viu o marido lendo-o com uma avidez quase sobrenatural.
O prefeito se ofendeu. O delegado ficou desconfiado com o Dario e o Padre achou por bem levar o livro para a Igreja.
O tempo passou e o ocorrido não passou de boato, e foi num domingo escaldante, quando o Padre estava arrumando as cadeiras velhas e varrendo a igreja que encontrou aquele trapo amarrado com uma corda e jogado no meio das madeiras quebradas. Não lembrava o que era e desatou o nó e desembrulhou o pano. Percebeu uma manga de camisa e antes que o livro ficasse exposto, lembrou-se do acontecido. Ficou algum tempo matutando e por fim decidiu-se por matar a sua curiosidade e ver o que havia naquele exemplar que tirara o prefeito de sua razão. Lembrou-se do dito da esposa do prefeito: “...livro dos diabos...” e enrolou-o de novo na camisa.

Quando amarrou a corda, sentiu um perfume atravessar o seu ser e pensou que era o homem mais feliz do mundo e nem percebeu quando o livro jazia em suas mãos e também não percebeu o suor, a barba por fazer, a fome a lhe carregar no colo e também a presença do delegado e do prefeito que lhe sacudiam à força para que fechasse aquele livro maldito e voltasse à realidade, pois que já fazia uma semana que a igreja estava fechada e todos estavam apavorados.





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2 comentários:

  1. Muito bom, Michele. Será que ficamos assim, quando lemos um livro interessante, perdemos a noção do tempo e do espaço?
    Abraço!

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  2. Não sei Rodrigo! Esse livro aí que mexeu com a cabeça do pobre Padre Dimas eu não queria nem de graça...Prefiro os livros comuns, sem cheiros de perfumes ocultos ou em letras indecifráveis... Sei não, sei não! Ainda bem que o delegado deu um fim naquela "coisa" e o mundo está em paz. Abraços

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