terça-feira, 8 de abril de 2014

Uma carta em tempos de guerra


Por Michele Calliari Marchese

Aconteceu durante a Guerra dos Pelados, bem quando o Mello resolveu ajudar os parentes revoltosos de Capinzal. Esses parentes diziam que a luta deles era divina e comandada pelo Messias José Maria, e toda e qualquer ajuda seria benvinda, de modo que o Mello achou por bem pegar o cavalo e pelear num local chamado Banhado Grande, contra as tropas do governo. Isso foi em 1915.
O Mello deixou a mulher e os filhos aqui na Campina da Cascavel, jurando de pé junto manter-se vivo a qualquer custo, nem que para isso precisasse lutar contra as suas próprias forças. Partiu naquela madrugada deixando a casa e o coração vazios.
Alana não quis contar-lhe naquela noite de decisões e despedidas que estava grávida, para que ele não voltasse atrás em seu veredicto e resolvesse ficar por causa do pequeno, mas teve uma ideia que faria com que ele retornasse tão logo soubesse da notícia.
Esperou por três longos dias e então escreveu uma linda carta de amor onde extravasava a sua enorme saudade, o neném em sua barriga e tudo o que ia a seu íntimo. Ao reler o papel, emocionou-se com o que escrevera e chorou, pingando sorrateiramente duas lágrimas na última página da missiva. Bem próximo do “eu te amo”, deixando a carta perfumada com o calor da sua alma.
Endereçou a dita-cuja bem direitinho, numa letra caprichosa de paixão e deparou-se com a dúvida: por quem mandaria? Como entregariam a carta?
Resolveu confiar no Padre Dimas, que decerto conhecia o tal de José Maria, mas ele não conhecia aquele tal, que usava o nome de Deus para promover guerras e discórdias, porém, poderia enviá-la à igreja de Caraguatá e o padre daquela paróquia saberia entregar para algum revoltoso do dito reduto.
Alana confiou, pois o Padre Dimas sempre soube o que fazer em horas difíceis.
A carta seguiu viagem em lombo de mula, através de um ambulante que estava de passagem por ali e iria para aquelas regiões e faria, com muito gosto, a vontade do Padre Dimas.
O pároco da pequena igreja de Caraguatá recebeu a missiva justamente quando estava trancando as portas para fugir daquele inferno sem precedentes, e diante daquela situação inesperada, não soube como agir, apenas deixou sua pequena mala de mão cair a seus pés. “Meu Deus”, ele disse, quantos Mellos haveriam de ter naquele reduto? Foi quando virou o envelope e sentiu o inebriante perfume do amor. “Alana!” E o padre suspirou. “Decerto que há um só Mello, dono do amor de Alana”. Contra todas as suas angústias, resolveu ler para ter um pouco de alento naquele momento de dor. Quando terminou a leitura, mais duas lágrimas caíram naquelas páginas sensíveis e tomou uma resolução: Iria até o reduto dos caboclos em missão de paz - já que era um padre - e entregaria a carta, pois ela deveria chegar até o Mello sem mais demora.
Pegou um pedaço de pau, amarrou um lenço branco na ponta e foi até o refúgio dos revoltosos. Estava tremendo de medo, mas tinha em suas mãos a vida inteira para sentir a esperança no meio do caos. Alguns soldados mandaram que parasse e se identificasse e mostrasse o que trazia e que falasse sem mais demora, pois que estavam partindo para a guerra.
O coitado do Padre só pôde balbuciar algumas palavras ininteligíveis e entregou a carta na mão daquele sentinela apavorado, saindo o mais rápido possível daquele antro de dor. Mas tinha a alma livre, dos que cumprem o objetivo para um mundo melhor. Tinha a esperança em seu semblante e isso o sentinela notou e rapidamente olhou a carta e repetiu tudo o que o padre havia dito em frente à capela – sem o saber – e também foi tomado pela urgência das palavras de Alana.
Como não sabia ler, pediu ao companheiro que o fizesse, porém ali, naquela herdade, não havia vivalma alfabetizada. E saíram os dois sentinelas correndo atrás do Padre de Caraguatá e pediram a ele que lesse, mas o Padre disse que não se pode ler as cartas dos outros, mas que leria, pois não sabia se eles estariam vivos para presenciar tamanha adoração.
E então, mais quatro lágrimas fizeram parte da carta de Alana naqueles tempos de guerra. E um dos sentinelas, enxugando com o braço o rosto suado, pediu ao Padre que rezasse por eles, pois um dia, gostaria de receber uma carta assim da mulher que amava. Naquela noite, o asilo inteiro ficou sabendo do teor da epístola, aumentada apaixonadamente pelos sentinelas e todos ficaram muito emocionados. Juraram partir, com a carta em punho, e encontrar o Mello, mesmo que estivesse morto.
Depois de muitos dias de jornada, aquele pelotão de revoltosos chegou a Banhado Grande numa grande expectativa de vitória e de encontrar o Mello. No meio de todo aquele confronto sangrento, encontraram o marido da Alana e entregaram a carta com apertos de mãos vigorosos e abraços afetuosos e tudo ficou repentinamente silencioso quando pediram que lesse novamente a carta.
O Mello não conseguia ler sem chorar e no meio daquela balbúrdia dos diabos, escutou uma voz próxima que lhe disse: “Vá!”
Era seu comandante que havia escutado tudo, e tinha o rosto banhado em lágrimas e pelejava contra o soldado do governo com uma fúria de louco e gritou no mesmo instante em que cravou a espada no peito do adversário: “VÁ!”



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