quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A Decisão

Por Helena Frenzel

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come! —gritava um animalzinho no laptop de um passageiro da outra fila, um homem com ar desanimado e que por certo vinha de outras tantas conexões. E era muito bonito, mas tinha uma aliança!
Lolita acomodou-se disposta a trocar a tentação do marido de outro ou de outra pelos escândalos pintados nas manchetes do jornal, um que recebera na entrada da aeronave. Vésperas de eleição era sempre o mesmo: ataques e acusações de um lado a outro e pouquíssima informação verdadeira e útil ao eleitor. Ainda faltava algum tempo para a decolagem, mas Lolita já trazia preso o cinto. Sentada junto à janela e com o jornal aberto não percebeu quando o assento ao lado foi ocupado por um velho político, uma daquelas raposas que ninguém consegue derrubar e que ela só notou por conta do “Vossa Excêlencia” dos bajuladores que logo se multiplicaram ao seu redor, para o terror dos comissários que não tinham espaço para se movimentar. Lolita quase não creu em seus olhos ao dar-se conta do bajulado, que como todo velho político a cumprimentou como se de fato se importasse com quem a seu lado se sentasse nas fileiras de um Fokker 100. Lolita sentiu o coração pulsando mais forte, de nojo talvez, e fez força para não levantar de um salto. Passara muito tempo com os nórdicos para ter-se graduado na arte de manter a calma e nada demonstrar. Respondeu ao cumprimento sem tirar os olhos do jornal e aprofundando mais o rosto entre as sujas páginas, lama pré-eleitoral que de campanha menos aparentava do que de uma guerra real. 

Muita coisa estava em jogo: meia década no poder e o povo que seguisse sustentado o sistema dos “mais iguais” e sentindo-se bem em seu posto de excluído num populismo mascarado de new socialismo, o mesmo povo que saía às ruas para protestar contra corruptos e capitalismo mas que não deixaria de votar jamais em quem lhes garantisse poder de compra e um tão invejado cargo em qualquer uma das inchadas instituições públicas, e era por isso que Lolita não cria naquele povo, povo que condena e faz igual, por vezes até pior. Nunca os políticos haviam representado tão autenticamente os seus eleitores, ali estava a razão do nível da atual campanha eleitoral. Decidir em quem ou como votar era para Lolita uma triste decisão, e era obrigatória.
Os bajuladores tiveram de voltar a seus assentos para o procedimento de decolagem, e nesse momento o velho político aproveitou para puxar conversa com a única passageira que parecia ignorá-lo:
—Está indo para São Luís?
Ela assentiu indiferentemente com a cabeça e soltou um resmungo de confirmação:
—Hum.
—É de lá?
—Hum.
—Mora em Brasília?
—Hum.
—Por quê veio para cá?
—Por que na minha cidade não há oportunidades para quem se qualifica, por isso somos obrigados a buscar essas chances em outros lugares. —Lolita falou sem pausa e sem olhar para a cara do parlamentar, o ódio borbulhando no estômago enquanto mordia a língua: “Filho de uma rapariga, tu não sabes que por conta da roubalheira tua e de teus pares é o Maranhão um dos estados mais atrasados de todo o país?”
—Trabalha onde?
—Numa empresa privada.
—Posso saber para quem vai seu voto?
—O voto é secreto. Desculpe, mas estou querendo ler o jornal.
— Não, eu perguntei porque...
A essas alturas o avião já havia decolado, o aviso de apertar os cintos estava apagado e os bajuladores voltaram a rodear o político super-star. Lolita pensou nas moscas que sugam a cloaca e sorriu para si, enfiando mais ainda a cara na lama do jornal.
Passado algum tempo, o burburinho era tanto que Lolita chegou a sugerir trocar de lugar com qualquer dos bajuladores, mas não foi necessário porque o avião entrou numa zona de turbulência e todos os passageiros foram obrigados a voltar para seus assentos, com a maior  urgência.
Foi coisa de segundos e máscaras de oxigênio despencaram. Eram gritos por todos os lados e objetos de lá pra cá, aqueles cujos donos não tiveram tempo de guardá-los antes da ordem do comissário. “Tem gente que pensa que só cai o avião alheio” e Lolita não se surpreendeu com esse pensamento, pois ainda que ela não sobrevivesse, sentia-se livre das obrigações daquele circo eleitoral. Lamentou a perda do homem alheio e sorriu pensando no senador.


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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Ele sabia


Por Michele Calliari Marchese

Ele sabia exatamente de que maneira sua vida expiraria, tal como estava presenciando naquele momento derradeiro, aquele último, onde restava somente a lembrança de saber o que ninguém nunca sabe.

Suspirava lentamente e não ousava abrir os olhos, queria ter a certeza de que acertara tim tim por tim tim sua morte visionária. Não tinha certeza de quando comprovara o desfecho final: se na primeira vez ou na segunda em que os desmaios o acometeram por banalidades e ele acabou chegando a essa conclusão sombria. Ora um encontrão distraído num poste de luz, ora uma batida de joelho na quina da cama e era o suficiente para que ele soubesse tudo.

Primeiro vinha a sensação de dor, em seguida uma disparada no coração e um frio congelante no pescoço anunciando o desmaio iminente, para em seguida braços e pernas pesarem toneladas a ponto dele não conseguir mais sustentá-los no corpo caindo pesadamente no chão. Pronto.

Morreria com esses sintomas era certo e tão certo quanto tantas vezes passara por isso a pensar: “É hoje.” Nunca desejara a morte, e benzia-se para afugentar possíveis pensamentos que pudessem porventura atrair aquela que ninguém nunca viu.

Agora estava ali, com cento e tantos anos, deitado no chão, porque o chão frio lhe fazia voltar o sangue no rosto, sozinho e de olhos fechados. Há muito a mulher partira e era a ela que havia contado, no meio de uma noite de inverno, que precisava ser socorrido quando tinha aquela sensação de desfalecimento; de ir-se embora para todo o sempre e das vistas que turvavam sem piedade.

Foi nessa vez que ela quase teve um troço quando o marido acordou de supetão e chacoalhou-a com tanta violência que achou tratar de jagunço invadindo a casa para roubar. Depois de acordá-la, saiu da cama dizendo estar passando muito mal e deitou-se no chão frio. Ela levantou aflita e não soube quais providencias tomar e foi então que ele contou todas as vezes que havia passado por essa situação sem entender nada do que lhe acontecia e que só agora falava porque sentiu nos ombros pesados a busca pela sobrevivência, ou pelo menos, para que ela não se assustasse se o encontrasse morto.

Distraiu-se quando o cóccix doeu. Sempre lhe doera quando deitava no chão, mas agora era praticamente insuportável, pela sua própria velhice não tinha muitas carnes para afofar o corpo flácido que sentia o peso da gravidade. Deitou-se de lado, porém o osso da bacia também suspirou. Colocou as mãos sob a poupança para aliviar e pensou nos filhos, todos longe, estudados, poupados de saber do mal que o pai sofria e ele sem saber como dizer naquele momento, que precisava deles ali, para erguê-lo e colocá-lo de volta na cama e contar-lhes as peripécias infantis que se perdem nas brumas do envelhecimento.

As lágrimas entraram em seus ouvidos e ele abriu os olhos. Não fora dessa vez, mas seria na próxima. Não deitaria no chão na próxima vez e escreveria algumas cartas antes do sol se pôr. Devia fazer muito tempo que estava deitado ali, pensando naquela vez que batera a cabeça na torneira e caíra. O rosto na grama fez com que os sentidos voltassem e foi aí que descobriu como livrar-se daquele mal súbito que o acometia de quando em quando. Antes nem tivesse descoberto. Mas o que estava pensando? Benzeu-se com as duas mãos, porque depois de velho parece que os pecados são mais contundentes. “Cruz credo desejar a morte”.

Mas apesar do medo que sentia em desejá-la, lá no seu íntimo pediu uma semana a mais para botar a correspondência em dia e avisar os filhos que seu tempo estava findando, assim como as borboletas, apesar de que as borboletas não vivem mais de cem anos. Riu-se e viu que precisava passar uma vassoura no chão, estava empoeirado. Riscou o seu nome em letras tão trêmulas que mal dava para ler, fez um coração e escreveu o nome da mulher morta. Nem sentia a bacia doendo naquele chão duro e segurou a cabeça com a mão esquerda enquanto rabiscava no chão aquela eternidade de amor e sofrimento.

Ela lhe entendera a vida toda. Fez mais quatro coraçõezinhos, um para cada filho e estalou os lábios ao lembrar que uma das cartas não seria escrita naquela semana, pois um dos filhos já partira levando um dos melhores pedaços de si e de sua esposa; o gelo tornou a cair em seu pescoço e ele sentiu novamente a ânsia, aquela náusea tão sua conhecida e que sentiu durante todo o tempo em que duraram as exéquias daquele filho. Pensou que não tinha mais sentido viver, mas olhou para os outros três e não poderia entregar-se, sabendo que se entregava com tanta dor que não era possível continuar. Mas continuou.

Sentiu-se melhor e nesse momento alguém entrou em seu quarto, em seguida vieram outras tantas pessoas e mais a visita do Frei Leonardo; acabaram-se as dores dos ossos, agora estava na cama e refeito. Pediria lápis e papel, não poderia esquecer jamais daqueles filhos. Sentiu um pano a limpar sua pele, um pente a pentear seus parcos cabelos, alguém a lhe colocar os sapatos de ir à missa.

Sentiu que lhe cruzavam as mãos enroladas no terço de sua falecida esposa que estava em cima da mesinha de cabeceira e chorou quando beijaram sua cabeça. A ladainha começou.

Ouviu as vozes chorosas dos filhos, inclusive daquele morto e estendeu a mão para a mão de sua mulher que o esperava sentada ao lado do caixão.






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