sábado, 10 de janeiro de 2015

UMA QUESTÃO DE NOME

Por Antonio Sodré

Clarice dizia que não buscava a beleza; buscava a verdade. Ainda que acredite que o nome quem faz é a pessoa, existe uma boa sonoridade, algo distinto e apreciável na junção de alguns nomes e sobrenomes. É que escritores – eu pensava - têm nomes difíceis, enigmáticos, simbólicos. É José, tão simples e belo, mas é Saramago. Poucos sabem que sem o “s” maiúsculo, o nome designa uma espécie de planta crucífera, ou seja, planta cujas flores têm corola em forma de cruz, como o agrião. Talvez exista um José Agrião em alguma parte, mas observem que mesmo que fosse um escritor respeitável, a sonoridade seria bem inferior. É Fernando, nome forte, expressivo, tanto quanto comum, mas é Sabino. E sabino é o nome de um antigo povo que habitava a Itália. Lembram-se do famoso “Rapto das Sabinas”? Pois é, mas o nosso Sabino continua sendo brasileiríssimo. Sim, continua, pois escritores não morrem, apenas ausentam-se dessa existência. Do mesmo modo, é Antônio, com ou sem acento agudo ou circunflexo, nome pelo qual tenho muita estima, mas é Calado. E entre os sentidos habituais da palavra, calado também é a distância entre a superfície da água em que uma embarcação flutua e a face interior de sua quilha. Um navio atracado está em calado. Soa, às vezes, irônico, pois Calado foi tudo menos calado. 
Alguns são atraídos pela tarefa de sondar a beleza por trás dos nomes, muitos adjetivados. Obras de teor lispectorante ou drummondiano atraem olhares curiosamente, porque nomes carregam marcas, insígnias. E muitas destas são atribuídas àlguma sorte, ou maldição. O nome Caim não é muito benquisto pelos pais... Por que será? E Lúcifer, portador da luz, não designa mais a sua origem. Satanás, o acusador, além do primeiro dono, só foi dado ao que me parece, ao perro da Bruxa do 71, Dona Clotildes. 
Se Clarice buscava a verdade, contextualizada na busca incessante de exprimir seu pensamento, sua verve literária, acabou por dar além de uma expressividade inconfundível, uma autenticidade imutável e incorruptível às suas obras, uma beleza encontrada apenas em suas histórias, em seus personagens, com nomes tantos e variados, incomuns como o nome da autora. Até hoje só conheci uma Macabéa... Tenho medo do nome Macabéa, talvez pela infeliz sorte da personagem, talvez porque é um nome sem sentido, de origem apenas onírica. Mas também me recorda uma estrela, um escarlate sanguíneo, uma redescoberta, catarse dessas que só quem conheceu Macabéa sabe.
Quem tem nome composto sabe a sina de se dirigir à muitas direções. Ora sou Antonio, o digno de apreço, o inestimável, ora sou Fernando, o ousado, o corajoso, ou em um tom mais austero e impessoal sou Sodré, de origem incerta, meio portuguesa, meio inglesa, sem sentido aparente, mas que causa até uma boa impressão; ou simplesmente, como sou menos conhecido, sou Júnior, o mais jovem entre duas pessoas. Nesse caso, entre três pessoas; o Júnior é a parte menos habitual de mim. Com os quatro nomes que possuo, posso fazer boas combinações, mas o que me agrada é que de tantos nomes, eu posso escolher ser o Antonio ou o Fernando que quiser, ou pelo menos tentar... Mas meu nome por muitas vezes assume outras nacionalidades, encarna outros gêneros, famílias, e me desafia. Que enquanto o texto não está pronto, eu sou o mote de sua criação, e me chamo por vezes Patrício, Espanca... Hoje eu fui completamente Lispector, numa dessas tantas outras licenças poéticas, que eu sei que vestindo um nome, é apenas mais um eu que pede para existir.



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Um comentário:

  1. É, Helena, você tem mesmo um "faro" apuradíssimo para perceber bons textos, assim como este de Antonio Sodré. Ele passeou com extrema perspicácia sobre o fio tênue, que tem numa ponta a notoriedade pelo talento que tem um nome de expressão, e na outra um nome que tem talento mas que não se tornou notável, mesmo que não seja o nome o que poderia lhe dar expressão. Coisas do mundo das letras. Gostei muito!
    Celêdian

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