quarta-feira, 22 de junho de 2016

Buscando o Nirvana


Por Michele Calliari Marchese

Como todo mundo sabe, o Nirvana é a superação do desapego dos sentidos, do material e da ignorância; tanto como a superação da existência, a pureza e a transgressão do físico. Simplíssimo.
A Dona Miraflor também pensou assim e tratou de executar seu plano.
O Bartolomeu era um homem de muitas posses aqui na Campina da Cascavel, porém muito pão duro; a avareza ditava seus passos e acumulava fortuna cada vez maior. Ninguém na casa aproveitava tão lauto recurso, viviam praticamente na miséria e a Dona Miraflor, sua esposa, não se conformava de somente suspirar ao passar em frente à loja de roupas e calçados.
Aquilo soava como uma injustiça para quem não podia comprar quase nada, sabendo que poderia comprar quase tudo.
Um dia, lendo uma revista antiga que achou na lixeira do vizinho, Dona Miraflor encontrou várias páginas que versavam sobre o Budismo e sobre o Nirvana. Leu com avidez e releu inúmeras vezes. Tratou de exercitar o desapego e praticar uma espécie de isolamento meditativo. Passava horas debaixo de um ipê, contemplando seu ser e de olho no marido, que parecia não notar o esforço inaudito para alcançar a superação.
O marido só notou a diferença quando chegou a casa para almoçar e a comida estava queimada. E ainda teve que ouvir, entre choros e lamentações, que o alimento para o fortalecimento da alma não era só aquele servido na mesa, e sim algo muito maior e que era encontrado dentro de cada um, através de reflexão.
Bartolomeu, morto de fome, ficou pensando no dito da mulher e comeu o que jazia nas panelas pretas para não desperdiçar e pediu que ela falasse mais sobre o assunto e o porquê de tanto silêncio. Ela contou tudo e disse estar determinada em encontrar a paz interior, o Nirvana, e chorou que sozinha a empreitada estava muito difícil e que para um bem maior seria necessário que ele também participasse naquele empenho de felicidade.
Ele topou com um pé na frente e outro atrás, não envolvia dinheiro de modo que não custava nada satisfazer uma bobagem da mulher. Por incrível que pareça ele gostou do processo e comprou alguns livros sobre o assunto, que demoraram muito a chegar.
O maior defeito do Bartolomeu era a avareza, mas como estava tudo guardado num banco não se preocupou com gastos e despesas –que eram mínimas– e pôde juntar-se à Miraflor no duro trabalho da superação do desapego. 
Aconteceu que num determinado momento a esposa voltou aos seus afazeres domésticos, deixando o marido sozinho em seus mais íntimos pensamentos e ele, resoluto, abdicou de muitas das coisas que lhe davam prazer. Leu todos os livros que chegaram e quando estava na penúltima página do segundo livro a esposa lhe apareceu com algum documento sem importância para assinar, afinal, ela não queria incomodá-lo com coisas vãs e terrenas. Ele assinou, questionando o porquê do tinteiro existir, e ficou extremamente chocado com a pena que empunhara para escrever seu nome naquele papel, deixando despenado algum pato qualquer. Teria que superar essa angústia.
Pois bem, numa noite qualquer, Dona Miraflor sugeriu-lhe que dormisse em outro quarto para que o seu ronco não atrapalhasse suas funções contemplativas da alma e ele aceitou, afinal, estava feliz.
A Dona Miraflor era a mulher mais feliz do mundo, com aquele papel assinado, conseguira sacar dinheiro do banco e satisfazer suas mais mundanas ambições. Encheu o quarto com roupas e calçados novos, desfilava na sociedade como era de seu direito e sempre com os cabelos enrolados, os quais eram feitos antes de dormir, com bobes especiais que ela mandara buscar na capital. Viajava para todos os lugares possíveis e imagináveis sem que o marido percebesse a sua ausência. Havia atingido o seu antinirvana enquanto ele estava prestes a doar o terreno dos fundos da casa para a construção de uma escola.
O Bartolomeu além de desapegado de sentimentos estava desapegado do olfato, porque era impossível alguém não saber quando a Dona Miraflor estava chegando com todo aquele cheiro de jasmim que emanava. Desapegou-se inclusive das faculdades óticas e só sabia murmurar “ooouuummmmmm” pelos cantos da casa, geralmente sentado no chão, com a barba por fazer e cheirando a suor.
O causo culminou no dia em que chamara o prefeito, numa ocasião mais que especial para a assinatura da doação das terras para a construção da escola e do ginásio de esportes –que ele construiria com seu dinheiro. Aconteceu que o tabelião não aceitou a transferência do bem, por causo de que já estava empenhado no banco para saldar dívidas contraídas.
Pediu dos outros bens e obteve a mesma resposta, e o pior de tudo é que não podia fazer absolutamente nada a não ser pagar. Era o fim do mundo e do seu tão sonhado Nirvana. Esqueceu o amor pelos bichos assim que soube a cifra devedora, a felicidade da alma escorreu pelo ralo quando escutou não haver muito que fazer a não ser decretar falência. Olhou para a mulher que jazia em posição de lótus no meio da sala de jantar entoando cânticos de amor e tudo o que aprendera sobre desapego sumiu nas brumas do esquecimento.
Saiu porta afora para coordenar seus pensamentos, que a essa altura estavam bem conturbados. A primeira atitude a ser tomada –assim pensava ele– era o divórcio. Demoraria, mas não tinha pressa, aprendera bem direitinho a lição. Metade das dívidas recairia para a sua esposa gastadeira antinirvana. A esse raciocínio ficou louco de raiva e mais ainda quando foi tirar satisfações com a mulher que já estava no quarto, trancada. Arrombou a porta com um pontapé e viu coisas tão maravilhosas e brilhantes que se apavorou. 
Pegou tudo o que reluzia diante da choradeira interminável de Miraflor. Levou-a pelo braço até o tabelião e a fez assinar a separação com milhares de testemunhas. Descobriu-se até um amante da dita cuja por lá, que se apressou em assinar os papéis.
Feliz, Bartolomeu voltou para casa e não deixou Miraflor entrar. Que fosse embora, em definitivo, sem nada para meditar sobre seu mirabolante plano nirvanístico. Pegou as joias que nunca dera e conseguiu saldar a sua metade das dívidas. Tacou fogo nos livros que lera para a contemplação do ser, a superação dos sentidos e tudo o mais de lindo que existe no universo. 
E então, finalmente atingira o Nirvana. 


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