quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Um amor platônico


Por Michele Calliari Marchese

De posse dos preciosos diários do Padre Dimas, Frei Leonardo muitas vezes tinha que ser chamado à razão por alguma beata que estranhava a ausência dele na sacristia e na igreja. Mas convenhamos, qualquer um teria que ser chamado à razão se tivesse os diários do Padre Dimas em mãos. Quantas revelações? Só lendo para saber, e era o que o Frei Leonardo fazia nas horas vagas. Vez ou outra esquecia algum batizado, imerso na leitura provocante e misteriosa que se apresentava em cada página.
Ficou atônito quando leu numa letra mais que caprichada, às vezes trêmula, o aparecimento do tabelião pedindo ajuda espiritual ao Padre Dimas. 
“Vila de Xanxerê, 14 de abril de 1915. Hoje veio visitar-me o ilustre amigo Rodinaldo, nosso incansável tabelião. Veio trazendo amarguras em seu coração despedaçado pelo amor impossível por uma jovem de nossa comunidade. Chorava em meus ombros dizendo não ser correcto aquele sentimento impróprio. Dizia-me “impróprio” porque era casado pelas leis de Deus e pela minha assimnatura. Ora, não pude fazer mais que retribuir tão penoso abraço. Mandei-lhe que rezasse cem Aves Marias, ajoelhado em frente ao altar e que depois viesse dizer-me sobre as suas impressões. Phinda a penitência, o pobre amigo, sempre muito gentil e prestimoso, contou-me ser impraticável o esquecimento daquele ser celestial. Não pude conter a curiosidade e pedi o nome da moçoila. Com muito custo respondeu-me ser a Lúcia, filha do inestimável Zé dos Arreios, lá das bandas do Peral. Não o pude censurar pelos arroubos que a formosura dela proporciona, pois que a rapariga é de uma beleza ímpar. Todos olham com furor quando ela passa, e nenhum dos homens recebe sequer um acemno de cabeça em cumprimento cordial. Creio que todos os homens poderiam facilmente apaixonar-se por tão inusitada beldade. Pobre de meu amigo tabelião! Iniciarei hoje sem mais tardamnça as rezas em prol de sua alma.”
O Frei Leonardo pulou algumas páginas para conseguir dar sequencia àquele apelo amoroso feito pelo falecido pai do Júnior. Teria caído nas desgraças da traição? Folhou, folhou, até que encontrou o dia em que o irmão da Lucia apareceu na igreja solicitando a presença do padre em sua casa.
“Vila de Xanxerê, 25 de julho de 1915. Hoje veio Antônio, filho do Zé dos Arreios, pedir-me que fosse incontinenti à casa da família. Fiquei atômnito com as explicações do rapaz enquanto nos dirigíamos para lá, pois a moça havia se deitado para dormir há cinco dias e não acordava por nada neste mundo. Fiquei atordoado. Enquanto retomava o fôlego para subir o morrinho que dá para a varanda, encontrei-me com o protético, muito pálido e completamente sem respostas para o que eu veria em seguida. Não pude conter-me naquela hora de ansiedade e quase me pus a chorar, porém comntive-me. Aquele pobre casal estava desesperado ante a iminência de morte da rebenta e meus passos não me conduziam ao quarto, mas sim para bem longe dali. Antônio, em sua aflição de irmão, pegou em meu cotovelo e levou-me para onde estava a jovem mais linda que eu já conhecera. Mal pude respirar ao ver aquele corpo estendido no leito, mostrando nitidamente que já fazia parte de outras esferas, aquelas das quais mal temos conhecimento. Sabia no fundo de minh’alma tudo o que o Rodinaldo sentia, para não dizer quantas Aves Marias rezei para que nunca o destino me colocasse cara a cara com aquela deusa. Sim! Deusa. Se pudesse descrever aqui a dilaceração do ser, estaria morto. Mandei que enterrassem sem mais demora, porque não aguentei tanto sofrimento, mesmo ela estando quente.”
Frei Leonardo não entendia se o Padre Dimas falava daquele amor como se fosse seu ou em complacência ao amigo apaixonado. E leu o outro dia, o dia do enterro da Lucia.
“Vila de Xanxerê, 26 de julho de 1915. Não escreveria essas linhas, porque não tenho palavras para descrever quão triste e comovente foi o velório de Lucia. Rodinaldo não compareceu, melhor assim. Não precisou testemunhar pedras e pedaços de pau que apareceram quando se abriu o caixão para o último adeus. Enterramos Zé dos Arreios no lugar da filha que desapareceu misteriosamente. Não há mais o que escrever e tampouco belezas a admirar. Dei meu adeus de homem para aquela que foi o mais fino diamante existente na face da terra. Dei meu adeus de padre para a filha caríssima do criador. Dei meu adeus para uma mulher, mesmo vendo o pai sendo baixado à terra. Sei em meu mais ínfimo pedaço que nunca mais verei Lucia. Amanhã consolarei o pobre Rodinaldo como me for possível, dando graças que nunca caiu em pecados.”
O frei estava atônito. Nunca lera tamanho absurdo em toda a sua vida; uma morta quente desaparecida do caixão. Procurou o desfecho da história, porém sabia que talvez nunca tivesse um fim e teria que ler amiúde todos os cadernos para ver se encontrava o terrível desfecho dessa história. Porém descobriu um amor, platônico ou não, mas puro com certeza.
Pois bem, um mês depois, no caderno de número duzentos e dezessete encontrou a resposta que procurava solucionar a todo custo:
“Vila de Xanxerê, 13 de agosto de 1920. Dói-me escrever essas linhas. Chamaram-me para verificar a morte do barbeiro acontecida sabe-se lá quando. O homem estava deitado em sua cama, sem os pudores exigidos pelas pessoas de bem, e quase desmaiei quando vi outro corpo dentro de um ataúde de vidro ao lado da cama daquele biltre. Lucia. Andei de um lado a outro e se não fossem os meus votos sagrados juro que não rezaria a extrema unção. Porém o fiz. Quando as exéquias finalizaram e aqui não me estendo, pois a raiva me contém, perguntei-me que tipo de pensamento tinha aquele homem ao roubar tão sagrado monumento. Lucia estava em perfeito estado de conservação por uma força milagrosa. Não me estendo, porém me pergunto como perguntei ao Rodinaldo: “Teria o senhor, capacidade para roubá-la em momento tão fortuito?” Rodinaldo, decerto que envergonhado pela pergunta, nunca me respondeu, porém posso responder pelos outros que sim! Ora diabos, e que Deus me perdoe. Sim!”


Leia também O Causo da Dona Lucia


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terça-feira, 23 de agosto de 2016

Melinda, meu amor


Por Michele Calliari Marchese

Depois que Frei Leonardo fechou aquelas páginas preciosas dos diários do padre Dimas a respeito do amor e mesmo que ainda pairasse a dúvida sobre a existência de tão energúmeno amor, lembrou-se de sua desgraça: Melinda. Casaria com ela, não fossem os desatinos de sua mãe em mandá-lo estudar para padre no Paraná.  
Ateu por convicção engatou namoro com Melinda aos dezessete anos, e a mãe, sem nem ao menos ouvir os arroubos de desesperado, mandou-o sem adeus e com um par de ceroulas num saco de açúcar em direção ao seminário para tornar-se padre.
Leonardo chorou a viagem inteira sem derramar uma lágrima sequer. Prometeu a Melinda que logo retornaria, aos dezoito, quando voltaria para casa de férias. Escreveu inúmeras cartas amorosas e cheias de esperança. Guardou centavo por centavo para quando pudesse construir o lar da futura família e Melinda seguia bordando o enxoval e tratando de amenizar as saudades com as lidas da casa.
Porém, quando estava prestes a terminar o ano, sua mãe adoeceu gravemente e mandou chamá-lo para a despedida. 
Ajoelhado ao lado da cama da moribunda, tinha os braços enlaçados no corpo inerte da mãe, chorava copiosamente pela iminência da morte. A dor foi maior quando ela abriu os olhos e lhe apertou com suavidade a ponta de um dos dedos. Num sussurro aflito pediu ao filho que concretizasse seu último desejo: “Seja padre, meu filho, faça isso pela sua mãe.” 
Leonardo foi tomado pelo assalto daquelas palavras e pela sua determinação em abandonar a batina. Não podia recusar aquele pedido e pensou que poderia pensar nisso depois, bem depois, quando tudo se acalmasse. Não dormiu pelas duas semanas seguintes ao passamento de sua mãe amorosa e temente; sentiu a falta, odiou-a, entendeu-a, pensou e repensou. 
Numa manhã nebulosa e fria foi que o Leonardo transmitiu seu adeus à Melinda, à família tão sonhada e aos filhos que nunca iria ter. Deixou Melinda desesperada na soleira da porta e com o coração dilacerado baixou a cabeça e seguiu em frente, para aquele destino que nunca escolheria para si. 
Frei Leonardo sentiu reviver em seu coração todas as dores daquele momento de partidas e escolhas e Melinda casou-se no ano seguinte com o primeiro que apareceu e mudou-se para o Goiás. Nunca mais a vira, tinha notícias de vez em quando, por conta de encontros casuais com os ex-sogros. Nesses momentos uma parte de si morria para o mundo.
Ordenou-se frei, como a mãe desejara. Porém era ateu. Todos os acontecimentos ligados à religião eram feitos com amor, porque havia abandonado uma vida de felicidade conjugal em prol do altruísmo divino. Era por ela que rezava as missas com ardor, por ela que abençoava uma criança e quando as batizava nunca pôde furtar-se em pensar que aquele rebento poderia ser o seu.
Convivia com essa frustração noite e dia e lendo os diários do Padre Dimas sentiu o alento que sua alma precisava. Não era o único que desertara de um amor; a única diferença era que ele havia recusado um para completar o amor da outra, aquela morta. Um amor por outro. Nem sentia mais raiva de sua mãe, decerto que fez o que fez conforme acreditava estar certa, naquela época era uma espécie de moda que o primeiro filho se ordenasse padre. 
Suspirou. Abriu de novo o diário do Padre, onde havia lido sobre aquele amor platônico e não foi capaz de encontrar mais as palavras sentidas e que cabiam tão bem em seu coração. Folheou por mais de duas horas e só parou quando uma beata bateu na porta da sacristia, chamando para a missa atrasada há mais de meia hora.
No seu discurso de sermão naquela noite abstrata, leu a Carta de Paulo aos Coríntios: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjose não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciênciae ainda que tivesse toda a féde maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. O Amor é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor.”

Fechou as páginas do Livro Sagrado com certa brutalidade e duas grossas lágrimas correram pela saudade de Melinda, e disse bem baixinho para o coração dela escutar: “Melinda, meu amor.”


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terça-feira, 16 de agosto de 2016

O assalto ao trem pagador


Por Michele Calliari Marchese

Numa tarde de calor infernal, quando as almas suadas recorriam ao frio da igreja para terem algum conforto foi que o Frei Leonardo resolveu arrumar os arquivos e notas que ficaram encaixotados desde que o Padre Dimas morreu.
Com a construção da nova sacristia, havia uma pequena despensa para arquivamento de papeis e outros livros importantes de anotações. Frei Leonardo catalogava e organizava tudo quando deu de cara com vários caderninhos amarrados com um cordão: os diários do Padre Dimas.
Pois o frei não sabia se lia ou se os deixava guardados, ou quem sabe até destruídos, mas para isso precisava saber do conteúdo para poder resolver aquele conflito interno, e claro, acalmar a curiosidade.
Sentou-se no chão, ergueu a batina até os joelhos, tirou os sapatos e as meias – naquele calor dos infernos, não conseguia ficar muito tempo vestido – e começou a leitura. A primeira delas contava sobre um homem desesperado, arrependido pelas graças da fé e pedindo ajuda ao Padre Dimas para que fosse acolhido e perdoado contando a história mais fantástica de todos os tempos. O assalto ao trem pagador. 
Esse homem, cujo nome fora resguardado no caderninho, apareceu na sacristia segurando o chapéu no peito e a cabeça baixa deixava cair muitas lágrimas. Era um dos vinte e sete jagunços contratados pelo famigerado Zeca Vacariano para assaltar as mulas que traziam o pagamento da empreitada da construção da estrada de ferro que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul.
Zeca Vacariano era dono de um armazém na localidade onde hoje é a cidade de Pinheiro Preto, era também empreiteiro de dois trechos dos trilhos da famosa estrada de ferro, e, devido à má administração, não conseguia pôr os salários dos empregados em dia. Foi num sábado à tarde que começou a arquitetar o plano que seria o mais famoso e misterioso de todos os tempos, conjuntamente com alguns empregados dispostos a qualquer coisa por dinheiro.
Dono de informações preciosas bastava-lhe aguardar a chegada do trem em Ponta Grossa, de lá o dinheiro viria em lombo de mula, pois a estrada não estava pronta para a máquina. As mulas passariam em frente ao seu comércio e por muitos dias aqueles assaltantes esperaram de armas em punho e muito silenciosamente. Era muito dinheiro, mais de 360 contos de réis, uma fortuna, que se fosse bem dividida entre eles, poderiam viver ricamente longe dali.
Entraram na mata em frente ao armazém. Nem o suor e as palpitações da ansiedade foram capazes de tirar aqueles homens de seus postos, tampouco suas mãos tremiam e quando atiraram, foi para matar.
No meio do pó e do calor primaveril, três corpos estendidos no chão, um ferido e um fugido em meio ao tiroteio, fizeram de Zeca Vacariano um dos homens mais ricos do Estado.
A operação não levou tempo algum, e munidos daquele malote extraordinário, embrenharam-se mata adentro. Caçados interminavelmente pelas tropas federais, estaduais e pelo corpo de segurança da empresa construtora, nunca foram vistos, nenhum rastro foi encontrado e tampouco nenhuma notícia foi fornecida pela gente da região.
Esse homem que estava nas pequenas letras do diário do Padre Dimas contava com 10 Contos de Réis em uma pequena bolsa que levava amarrada à cintura. Dizia que era dinheiro do diabo, mas que não havia disparado nenhum tiro e pedia a redenção, o perdão, e precisava trocar de nome e de vida. Daria de bom coração parte do dinheiro aos pobres do Padre Dimas e com o restante compraria uma fazenda para fazer a prosperidade chegar à Campina da Cascavel.
O Padre Dimas chamou o tabelião e o delegado. O delegado prendeu o homem e mais tarde acabou absolvendo-o por falta de provas enquanto o tabelião preenchia vários documentos e o Padre distribuía aquela parte do dinheiro aos pequenos caboclos que não haviam sido expulsos daqui quando iniciou a colonização pelos migrantes gaúchos.
O Frei Leonardo, que não conseguia mais ler porque estava escuro, deu um suspiro de indignação, porém ao acender a vela para continuar a leitura, perdeu a página que estava lendo quando o livro fechou-se sem querer, e buscando freneticamente onde havia parado a leitura, lia pequenos trechos de datas posteriores onde o nome do Coronel Vitório aparecia com frequência, sendo o maior benfeitor da Campina da Cascavel durante o tempo em que ficou vivo.
Folhou os diários seguintes, e aquele nome aparecia com algum bem doado, alguma compra realizada ou doações incalculáveis para quem necessitasse de ajuda, porém, numa determinada festa natalina, sua verve de jagunço falou mais alto quando deu cabo do Papai Noel ao término do evento.
“O Padre Dimas sempre soube de tudo”, disse em voz alta Frei Leonardo, que fez as contas muito apressadamente porque naquela época 1 conto equivalia a 1 quilo de ouro. Esse suposto jagunço do trem pagador tinha 10 contos e bem poderia ser o Coronel Vitório de outrora. Frei Leonardo não dormiu naquela noite e tampouco nas noites seguintes. Quis contar a alguém, mas não foi capaz de conspurcar os segredos do melhor homem do mundo.

* * *


Para esclarecimento ao leitor, hoje 1 grama de ouro vale R$ 95,50. O dinheiro do assalto se fosse convertido para os dias atuais (em ouro), dariam aproximadamente 35 milhões de reais. Porém há contestações quanto à quantia roubada. Os assaltantes nunca foram encontrados e há suposições de que tenham se matado entre si ou que foram ao Uruguai. Apenas especulações ao mais misterioso assalto acontecido em Santa Catarina.


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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Porta


Por Helena Frenzel

Entrar e sair... poder é tudo o que importa, nascer privado disso dissolve qualquer valor.

Não se pensa muito quando se está correndo, é fato. E eu não podia pensar na oportunidade, justo naquela manhã sem grandes planos. Eu tinha uma entrega a fazer na oficina e já me esperava o soldado. Tão logo cheguei ele se aproximou. Primeiro, desconfiado, vasculhou-me dos pés à cabeça com o seu mais-que-treinado olhar. Se tinha fogo?, perguntei pacífico, mostrei um cigarro e ele relaxou, o olhar e o sorriso. Coisa mais rara é soldado sorrir, mas aquele sorriu. Não tinha como eu ser inimigo, estávamos todos do mesmo lado, inimigos eram só os que eles já tinham matado, e ali estávamos apenas nós dois, sós. Acendi meu cigarro e junto ao isqueiro entreguei o maço, ele me olhou um tanto indeciso e pegou um do meio. Por que não pegou um cigarro do canto?, eu me perguntara, sempre um do meio, da massa, sempre um igual... O treinamento é o que nos torna bigorna, me diziam. Perguntei sobre o tempo e sem perder mais tempo entrei nos detalhes técnicos: quis saber, muito desinteressado, se dirigir um Panzer era o mesmo que guiar um caminhão. E quantas marchas, e como se ligava, e como se fazia por aqui e por acolá e, por precaução: como se fazia para atirar. Dois homens eram necessários, um para conduzir e outro para manejar o canhão. Falar de máquinas humaniza outras máquinas e logo ele estava me mostrando o painel com botões gigantes e a cabine, o freio, a barra de direção e nesse momento o relógio da igreja bateu, três vezes. Era uma manhã fria, mas logo comecei a suar por dentro do macacão de aprendiz. Ele não deve ter percebido, seguiu me explicando ingenuamente quase tudo o que perguntei.  Nesse momento veio de lá o mecânico, precisava de ajuda com o teste da A36. Dei uma olhada no Panzer e... estava aberto, estava lá e era só o que eu precisava, nem mais um segundo: entrei e pé na estrada! Ainda ouvi os tiros atrás de mim, mas eu só pensava no muro: 5 quilômetros e aí sim, eu estaria livre. Estaria, estaria, a gente só quer ser e estar, estar bem e estar vivo, a gente quer respirar e definir a própria vida, e eu não nasci assim, engaiolado. A sede pela liberdade foi nascendo em mim aos poucos, antes eu não me importava que os outros decidissem por mim. Nasci passarinho e cresci pioneiro, todos os dias a mesma doutrina, perdi o sentido até de uma canção natalina, "coisa de capitalistas!" A gente nasce só e cresce coletivo, só na hora da morte volta-se a ser tão-só... e eu só queria poder decidir por mim mesmo e do outro lado parecia tão mais largo... Mais de 600 quase haviam cruzado e eu, se não conseguisse, preferia morrer. Eu acelerava o quanto podia os quilômetros que ainda faltavam e ia contando regressivamente, contagem para viver. Eu fazia aquele caminho todos os dias, sabia quanto tempo precisaria para fazê-lo num veículo, treinara de bicicleta, a pé, de caminhão e agora fugia num Panzer, os tiros pipocavam e eu ali, protegido pela minha carcaça metálica e minha força de vontade surreal. Faltava apenas um quilômetro quando enviaram reforços, agora não tinha mais como retornar, ou era adiante ou era a morte e eu não pensei um segundo mais. Diante de mim estava o muro, agora racha, agora vai! E fui com tudo, acabei com o Panzer, que ficou no meio, no meio do muro ficou o Panzer e eu não tive outro jeito que não deixar meu escudo e enfrentar a fúria e a munição. Com o corpo ardendo em adrenalina saí correndo, faltava o arame farpado para enfrentar, fiquei ali preso por alguns momentos, a tensão era tanta que não senti nenhuma das balas entrando, eu estava correndo para a vida, estava indo para o céu. E foi quando mãos me agarraram e foram me puxando para o lado de lá, ainda rasgando a roupa, ainda rasgando a carne, nada disso eu pude registrar, mas senti cada milímetro de liberdade. Num momento escureceu-me a vista e não vi nem ouvi mais nada, acordei numa cama, num lugar estranho. A primeira coisa que lembro de me terem dito foi: “Bem vindo a Berlim ocidental.” Aí eu chorei, recém-nascido, e fui me dando conta das balas e perfurações. "Contaram 24, fora os incontáveis arranhões, mas você está vivo, camarada", e esse "camarada", pela primeira vez em minha vida, em liberdade, teve toda uma outra entonação. Antes de cruzar o muro aprendi com eles; do outro lado, aprenderam comigo também, que fui o último a forçar uma  porta, custasse o que custasse... O muro agora estava sendo reconstruído à prova de colisões de Panzers, e ironicamente, em forma de L, "L" de liberdade, "L" de loucura e "L" de Leons...


Baseado num caso real.






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