quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Porta


Por Helena Frenzel

Entrar e sair... poder é tudo o que importa, nascer privado disso dissolve qualquer valor.

Não se pensa muito quando se está correndo, é fato. E eu não podia pensar na oportunidade, justo naquela manhã sem grandes planos. Eu tinha uma entrega a fazer na oficina e já me esperava o soldado. Tão logo cheguei ele se aproximou. Primeiro, desconfiado, vasculhou-me dos pés à cabeça com o seu mais-que-treinado olhar. Se tinha fogo?, perguntei pacífico, mostrei um cigarro e ele relaxou, o olhar e o sorriso. Coisa mais rara é soldado sorrir, mas aquele sorriu. Não tinha como eu ser inimigo, estávamos todos do mesmo lado, inimigos eram só os que eles já tinham matado, e ali estávamos apenas nós dois, sós. Acendi meu cigarro e junto ao isqueiro entreguei o maço, ele me olhou um tanto indeciso e pegou um do meio. Por que não pegou um cigarro do canto?, eu me perguntara, sempre um do meio, da massa, sempre um igual... O treinamento é o que nos torna bigorna, me diziam. Perguntei sobre o tempo e sem perder mais tempo entrei nos detalhes técnicos: quis saber, muito desinteressado, se dirigir um Panzer era o mesmo que guiar um caminhão. E quantas marchas, e como se ligava, e como se fazia por aqui e por acolá e, por precaução: como se fazia para atirar. Dois homens eram necessários, um para conduzir e outro para manejar o canhão. Falar de máquinas humaniza outras máquinas e logo ele estava me mostrando o painel com botões gigantes e a cabine, o freio, a barra de direção e nesse momento o relógio da igreja bateu, três vezes. Era uma manhã fria, mas logo comecei a suar por dentro do macacão de aprendiz. Ele não deve ter percebido, seguiu me explicando ingenuamente quase tudo o que perguntei.  Nesse momento veio de lá o mecânico, precisava de ajuda com o teste da A36. Dei uma olhada no Panzer e... estava aberto, estava lá e era só o que eu precisava, nem mais um segundo: entrei e pé na estrada! Ainda ouvi os tiros atrás de mim, mas eu só pensava no muro: 5 quilômetros e aí sim, eu estaria livre. Estaria, estaria, a gente só quer ser e estar, estar bem e estar vivo, a gente quer respirar e definir a própria vida, e eu não nasci assim, engaiolado. A sede pela liberdade foi nascendo em mim aos poucos, antes eu não me importava que os outros decidissem por mim. Nasci passarinho e cresci pioneiro, todos os dias a mesma doutrina, perdi o sentido até de uma canção natalina, "coisa de capitalistas!" A gente nasce só e cresce coletivo, só na hora da morte volta-se a ser tão-só... e eu só queria poder decidir por mim mesmo e do outro lado parecia tão mais largo... Mais de 600 quase haviam cruzado e eu, se não conseguisse, preferia morrer. Eu acelerava o quanto podia os quilômetros que ainda faltavam e ia contando regressivamente, contagem para viver. Eu fazia aquele caminho todos os dias, sabia quanto tempo precisaria para fazê-lo num veículo, treinara de bicicleta, a pé, de caminhão e agora fugia num Panzer, os tiros pipocavam e eu ali, protegido pela minha carcaça metálica e minha força de vontade surreal. Faltava apenas um quilômetro quando enviaram reforços, agora não tinha mais como retornar, ou era adiante ou era a morte e eu não pensei um segundo mais. Diante de mim estava o muro, agora racha, agora vai! E fui com tudo, acabei com o Panzer, que ficou no meio, no meio do muro ficou o Panzer e eu não tive outro jeito que não deixar meu escudo e enfrentar a fúria e a munição. Com o corpo ardendo em adrenalina saí correndo, faltava o arame farpado para enfrentar, fiquei ali preso por alguns momentos, a tensão era tanta que não senti nenhuma das balas entrando, eu estava correndo para a vida, estava indo para o céu. E foi quando mãos me agarraram e foram me puxando para o lado de lá, ainda rasgando a roupa, ainda rasgando a carne, nada disso eu pude registrar, mas senti cada milímetro de liberdade. Num momento escureceu-me a vista e não vi nem ouvi mais nada, acordei numa cama, num lugar estranho. A primeira coisa que lembro de me terem dito foi: “Bem vindo a Berlim ocidental.” Aí eu chorei, recém-nascido, e fui me dando conta das balas e perfurações. "Contaram 24, fora os incontáveis arranhões, mas você está vivo, camarada", e esse "camarada", pela primeira vez em minha vida, em liberdade, teve toda uma outra entonação. Antes de cruzar o muro aprendi com eles; do outro lado, aprenderam comigo também, que fui o último a forçar uma  porta, custasse o que custasse... O muro agora estava sendo reconstruído à prova de colisões de Panzers, e ironicamente, em forma de L, "L" de liberdade, "L" de loucura e "L" de Leons...


Baseado num caso real.






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4 comentários:

  1. Muito bom, Helena! Abraço da Beatriz

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    1. Obrigada, Béti, tua presença aqui sempre nos honra e me alegra muitíssimo!

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  2. Puxa! Que história!
    - Alice -

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    1. Também mexeu comigo... Por isso virou "escrito". E o cara sobreviveu mesmo, vi num documentário. O que a gente não faz pra escapar de um cativeiro, não? Obrigada, Alice, tua presença muito nos honra e me alegra demais!

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