terça-feira, 23 de agosto de 2016

Melinda, meu amor


Por Michele Calliari Marchese

Depois que Frei Leonardo fechou aquelas páginas preciosas dos diários do padre Dimas a respeito do amor e mesmo que ainda pairasse a dúvida sobre a existência de tão energúmeno amor, lembrou-se de sua desgraça: Melinda. Casaria com ela, não fossem os desatinos de sua mãe em mandá-lo estudar para padre no Paraná.  
Ateu por convicção engatou namoro com Melinda aos dezessete anos, e a mãe, sem nem ao menos ouvir os arroubos de desesperado, mandou-o sem adeus e com um par de ceroulas num saco de açúcar em direção ao seminário para tornar-se padre.
Leonardo chorou a viagem inteira sem derramar uma lágrima sequer. Prometeu a Melinda que logo retornaria, aos dezoito, quando voltaria para casa de férias. Escreveu inúmeras cartas amorosas e cheias de esperança. Guardou centavo por centavo para quando pudesse construir o lar da futura família e Melinda seguia bordando o enxoval e tratando de amenizar as saudades com as lidas da casa.
Porém, quando estava prestes a terminar o ano, sua mãe adoeceu gravemente e mandou chamá-lo para a despedida. 
Ajoelhado ao lado da cama da moribunda, tinha os braços enlaçados no corpo inerte da mãe, chorava copiosamente pela iminência da morte. A dor foi maior quando ela abriu os olhos e lhe apertou com suavidade a ponta de um dos dedos. Num sussurro aflito pediu ao filho que concretizasse seu último desejo: “Seja padre, meu filho, faça isso pela sua mãe.” 
Leonardo foi tomado pelo assalto daquelas palavras e pela sua determinação em abandonar a batina. Não podia recusar aquele pedido e pensou que poderia pensar nisso depois, bem depois, quando tudo se acalmasse. Não dormiu pelas duas semanas seguintes ao passamento de sua mãe amorosa e temente; sentiu a falta, odiou-a, entendeu-a, pensou e repensou. 
Numa manhã nebulosa e fria foi que o Leonardo transmitiu seu adeus à Melinda, à família tão sonhada e aos filhos que nunca iria ter. Deixou Melinda desesperada na soleira da porta e com o coração dilacerado baixou a cabeça e seguiu em frente, para aquele destino que nunca escolheria para si. 
Frei Leonardo sentiu reviver em seu coração todas as dores daquele momento de partidas e escolhas e Melinda casou-se no ano seguinte com o primeiro que apareceu e mudou-se para o Goiás. Nunca mais a vira, tinha notícias de vez em quando, por conta de encontros casuais com os ex-sogros. Nesses momentos uma parte de si morria para o mundo.
Ordenou-se frei, como a mãe desejara. Porém era ateu. Todos os acontecimentos ligados à religião eram feitos com amor, porque havia abandonado uma vida de felicidade conjugal em prol do altruísmo divino. Era por ela que rezava as missas com ardor, por ela que abençoava uma criança e quando as batizava nunca pôde furtar-se em pensar que aquele rebento poderia ser o seu.
Convivia com essa frustração noite e dia e lendo os diários do Padre Dimas sentiu o alento que sua alma precisava. Não era o único que desertara de um amor; a única diferença era que ele havia recusado um para completar o amor da outra, aquela morta. Um amor por outro. Nem sentia mais raiva de sua mãe, decerto que fez o que fez conforme acreditava estar certa, naquela época era uma espécie de moda que o primeiro filho se ordenasse padre. 
Suspirou. Abriu de novo o diário do Padre, onde havia lido sobre aquele amor platônico e não foi capaz de encontrar mais as palavras sentidas e que cabiam tão bem em seu coração. Folheou por mais de duas horas e só parou quando uma beata bateu na porta da sacristia, chamando para a missa atrasada há mais de meia hora.
No seu discurso de sermão naquela noite abstrata, leu a Carta de Paulo aos Coríntios: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjose não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciênciae ainda que tivesse toda a féde maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. O Amor é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera tudo crê, tudo espera e tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor.”

Fechou as páginas do Livro Sagrado com certa brutalidade e duas grossas lágrimas correram pela saudade de Melinda, e disse bem baixinho para o coração dela escutar: “Melinda, meu amor.”


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Um comentário:

  1. Muito bom! Ando apaixonada por essas tuas histórias.
    - Alice -

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