quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Mantas



Por Helena Frenzel

Como de costume, de manhã, dona Giulia sentou-se na varanda, cobriu as pernas com uma manta colorida e começou a tricotar. Eu, curiosa, sentei-me ao lado dela e também cobri as minhas, pernas, com uma manta bege, que cheirava a roupa limpa. "Foi a senhora quem as fez?", perguntei. "Todas!", ela respondeu. É que já estava frio, era novembro, e por isso mesmo ela queria terminar o que começara antes que chegasse o inverno, ela me disse. De sua varanda via-se as montanhas e dona Giulia, entre um ponto e outro do tricô, se perdia em recordações. "Se ao menos eu tivesse atendido ao seu pedido…"

Para ela, tudo havia começado naquele dia em que um soldado alemão, com uma metralhadora carregadíssima, disse que ali ela não poderia entrar. "Como assim, não posso entrar? É minha casa!", ela ainda quis perguntar, mas achou melhor não. Primeiro porque não sabia falar alemão e segundo porque o soldado parecia nada bem humorado. Ela me disse: "Eu me virei, peguei minha bicicleta caladinha e voltei o quanto antes para o restaurante da minha família, que ficava a poucos metros dali".

Que o povoado estivesse cheio de soldados, isso não era novidade, novo agora era eles começarem a determinar quem podia entrar ou sair de certos lugares, incluindo a própria casa. E foi por isso que as pessoas começaram a se organizar para resistir àquele abuso. Os homens, aqueles que ainda não haviam sido presos ou que não estavam escondidos nas montanhas, não podiam circular à vontade, sempre eram parados por alguma blitz; já as mulheres podiam andar livremente pela cidade e os soldados não as impediam porque alguém precisava fazer o trabalho que elas faziam. Naquele dia, quando o soldado alemão lhe disse "Halt!", que significa "Pare!", alguma coisa começou a ferver dentro de dona Giulia, e também no seio do povo que ali vivia, é que o ponto de resistência havia chegado. Sem pensar nem demorar muito, dona Giulia começou a ajudar os rebelados.

"Eu transportava armas, mantimentos, informações, tudo o que fosse possível com a minha bicicleta. Houve um dia em que eu vinha subindo uma montanha —e nós conhecíamos aquelas montanhas como ninguém, cada pedaço!— quando vi dois soldados alemães se aproximando. E justo naquele dia, no bagageiro da minha bicicleta estava escondida uma pistola que eu estava levando para um grupo de rebeldes. Tratei de me acalmar e não deixar transparecer o medo que me tremulava por dentro. Um dos soldados me perguntou num italiano quebrado: "Da dove vai?". Pensei: "Pense, pense, pense, não deixe o medo saltar, invente uma história", tudo isso eu pensava no ritmo louco do meu coração e foi quando eu disse a primeira coisa que me veio na cabeça, que minha mãe estava muito doente em casa, lá na montanha, e que eu estava apressada porque estava levando remédio para ela, e comecei a chorar. Não sei se por conta das lágrimas ou se porque eu era una bella ragazza, só sei que os soldados baixaram a guarda e me deixaram passar sem blitz. Naquele dia eu tive muita sorte!"

Dona Giulia não contou logo em casa que estava ajudando os rebeldes. O pai e o irmão mais velho, estes ela sabia que a apoiariam, mas a mãe, esta ela tinha certeza que seria até capaz de denunciá-la aos soldados alemães. "Eu não entendia a minha mãe, ela não gostava de gente rebelde, ainda mais de mulheres rebeldes. Eu sempre tive muitos problemas com ela, pois ela queria que eu fosse mansa e eu não conseguia me calar para injustiças. Um dia ela quis que eu lavasse as roupas do meu irmão e eu disse que não lavaria, pois ele é que tinha que lavar as roupas dele, e ninguém lavava as minhas. A resposta dela foi um tapa na minha cara, e aí mesmo foi que eu não lavei mais nada. Ela quis me obrigar, mas meu pai me salvou de suas garras dizendo que também achava muito justo que Nino lavasse as próprias roupas".

Naquele ano de 1944, quando as coisas se complicaram, dona Giulia decidiu se juntar por uns dias aos rebeldes na montanha para aprender a atirar e a montar e desmontar armas. Nesse meio tempo ela já havia contado ao pai e ao irmão o que fazia às escondidas e estes lhe deram todo o apoio. A mãe só soube da rebelião da filha quando esta já estava nas montanhas, escondida, e nada contra pôde fazer. Foi nesse acampamento que dona Giulia conheceu Enzo, um rapaz um pouco mais jovem do que ela e que também estava em treinamento. 

"Enzo lembrava um pouco o meu irmão, mas era muito mais bonito. Ele era muito inteligente e nós conversávamos bastante. Ali nas montanhas não havia divisão entre homens e mulheres, era um lugar e um momento em que todos éramos iguais. Um dia ele me disse que seu maior desejo era ter uma namorada, que nunca havia sequer beijado uma mulher. Foi então que me perguntou se eu queria ser sua namorada e eu, como nunca havia pensado nessas coisas disse que naquele momento não, mas que quando acabasse a guerra se podia voltar ao assunto. No dia seguinte me mandaram voltar para casa, para obter novas informações, mais armas e mantimentos."

A essa altura a mãe fazia de conta que não sabia das atividades da filha, até mesmo porque a situação havia piorado muito, o horror era enorme e ninguém mais aguentava os absurdos daquela guerra sem sentido. Numa noite, veio o pároco visitá-los. Era uma época insuportável e por isso mesmo as pessoas se viam gratas por qualquer oportunidade de estarem juntas. Naquela noite, a mãe de dona Giulia e o pároco começaram a falar mal das mulheres que se juntavam à resistência, que isso não era coisa de mulher direita, que ficavam mal-afamadas e que por conta disso não arrumariam marido. A esse impropério dona Giulia respondeu: "As pessoas que estão lá nas montanhas estão lutando pela liberação da Itália e estão preocupadas com coisas muito mais importantes, como salvar vidas que estão sendo exterminadas nos campos de concentração nazistas. Também estão lutando pelas pessoas que ficam aqui em baixo acomodadas e unicamente preocupadas com a honra e a má-fama das mulheres." E a mãe de dona Giulia não soube o que dizer ao pároco diante daquelas idéias subversivas da filha. Foi também nesta noite que dona Giulia teve um sonho vivo. Sonhou com Enzo tiritando de frio, como se estivesse ferido, gritando seu nome e suplicando um beijo. Ela acordou assustada dizendo: "Já vou, Enzo, já vou!".

"Vinte anos depois foi que fui saber que naquela mesma noite em que o pároco visitou a nossa casa o grupo em que Enzo estava lutando se enfrentou com uns soldados alemães e que ele, baleado, caiu no rio. O corpo dele foi encontrado dias depois, preso por baixo nas raízes de uma árvore em uma das margens. Os companheiros imaginam que ele, ferido, não teve forças para sair dali e acabou morrendo de frio naquele lugar. A guerra acabou oficialmente pra nós no dia 25 de abril de 1945. Depois de algum tempo eu passei a visitar o lugar em que enterraram Enzo. Não tive a chance de dizer a ele que seria muito feliz em ser sua namorada e que se não fossem essas convenções idiotas que aprisionam as pessoas, sobretudo as mulheres, que ele não teria morrido sem ter provado sequer um beijo. E é por isso que eu, a cada ano, tricoto duas mantas. Uma delas é para diluir o meu remorso por não ter atendido imediatamente ao desejo dele, e a outra eu levo para cobrir o túmulo e tentar aplacar a dor e o frio que o tirou de nós ainda tão jovem.“

Saí da casa de dona Giulia naquele dia com duas mantas: uma na sacola, a manta bege que me aqueceu as pernas durante a nossa conversa, e a outra, colorida, bem guardada e aquecida no meu coração idealista.




Fora o desenho geral dos fatos, que se baseiam em histórias da vida real na Itália da Segunda Guerra, todo o resto é ficção.


Nota da autora: como a frase acima ficou um tanto ambígua, explico nesta nota o que nesta história exatamente é derivada de fato real e o que é ficção, pois dar os créditos devidamente é sempre necessário. Dona Giulia é um nome fictício para uma corajosa italiana, cujo nome verdadeiro não recordo, já falecida e que atuou na resistência contra fascistas e nazistas. Tomei conhecimento de sua história por conta de um documentário cujo título não recordo, assistido há muito tempo em algum seminário sobre o papel fundamental das mulheres na resistência italiana, papel ainda hoje não reconhecido devidamente. Os relatos da personagem dona Giulia, no meu texto, correspondem em resumo à história contada pela senhora no documentário, incluindo a sua relação com a família e sua postura e pensamento, já bastante emancipados para os anos 1940. Enzo é um nome fictício para uma pessoa que também existiu na vida real, cujo nome verdadeiro também desconheço, e que viveu e morreu como conta a personagem dona Giulia no meu texto. Os companheiros do verdadeiro Enzo contaram à verdadeira dona Giulia, vinte anos após o fim da Segunda Guerra, como provavelmente ele havia morrido e como encontraram o seu corpo. A única coisa que ela sabia até então era que o  amigo estava entre as vítimas da guerra e onde estava enterrado seu corpo. O encontro entre dona Giulia e a narradora, e o diálogo entre as duas,  é algo que só ocorreu no plano da fantasia da autora.



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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A bordadeira, a blogueira e a pensante


Por Michele Calliari Marchese

Estavam as três sentadas em suas respectivas cadeiras, abanando o rosto com o que tinham em mãos. O calor sufocante daquele sábado primaveril não dava tréguas aos rímeis e lápis que teimavam em escorrer dos cílios caindo inesperadamente sobre a bolsa dos olhos formando um cânion de olheiras. Profundas, cansadas, não só pelo pretume da maquiagem borrada, mas próprio daquele sábado escaldante.
A Silvia bordava sua interminável tela. Fazia quase um ano que bordava aquele pedaço do tapete, sempre com a mesma cor, uma cor sem cor, desbotada, pálida; para que as outras cores realçassem inesperadamente fazendo com que as pessoas pensassem duas vezes antes de limparem seus pés naquela preciosidade que lhe tomara dezoito meses. Dezoito meses! Era muito tempo bordando um reles tapetinho que não media mais que meio metro. Pensou nele colocado na porta, lindo de morrer e nos pés sempre sujos dos filhos que entravam e saíam correndo e de quantas vezes teria que lavá-lo durante a semana e foi capaz de soltar a agulha, deixando-a cair pelo bordado, suspensa somente pela linha que já pontuava um ponto incompleto. Olhou para os pés daquela pensante, sentada à sua direita, de cabeça baixa, pensando e pensando e não dizia uma palavra nem que fosse um suspiro para mostrar que estava ali, junto com as outras duas. “Pelo menos os pés me parecem limpos”, daria com gosto o tapete para que ela pisasse, mas somente depois que tirasse os tênis e dependendo do estado das meias, essas também.
A Teresa seguia teclando em seu teclado de mil caracteres, sempre buscando um novo, alguma coisa com o que distrair os visitantes de sua página virtual, uma página nada a ver, pensava ela naquele instante; “porque diabos fui fazer essa porcaria de página, agora estou presa aqui”, e estava presa na diversidade irreal que montava e apagava sem parar, limpando de quando em vez as gotas de suor que brotavam em sua testa, desejando bordar ao invés de teclar, porém notou que as linhas eram de lã e desejou pensar como aquela pensante sentada na cadeira à sua direita que nem suspirava como era de se esperar naquele calor e mantinha a cabeça baixa por quê? Nem queria saber, provavelmente somente pensava e pensava e olhou a bordadeira com a mão no queixo a olhar para a pensante com a linha dependurada no bordado como que largando tudo numa estafa inconsciente, “é uma louca bordar nesse calor”, mas notou que nenhuma das duas suava como ela e talvez nem sentissem tudo o que sentia e poderia ser a menopausa e pensou na quantidade de absorventes que comprara numa promoção, “teria que dar para alguém que ainda precisasse”; sentiu certo alívio pela proximidade de não sentir mais cólicas, colocou a mão na barriga que tinha parido três filhos e olhando para aquela pensante que não tinha filhos e estava no furor da juventude ali parada “sem respirar, me parece” notou que ela cruzou os pés “estava viva, graças a Deus!” 
A bordadeira notou que o “tec tec tec” da digitação havia parado e aquilo tirou-a do torpor que sentira ao auscultar minuciosamente a pensante, cruzara os pés, então estava viva “graças a Deus” se tivesse morrido ali sentada o que aconteceria depois? Decerto teriam que chamar muitas pessoas e levantou-se para pegar o celular e verificar se tinha todos os números possíveis, de polícia a SAMU, de bombeiros a médicos, fariam o que depois? Chamariam os parentes e pensou que a maioria deles residia em outra cidade, “mas o que faz essa moça aqui, longe dos parentes?” Não se deteve por muito tempo nessas elucubrações, havia um bordado a terminar e não havia tempo até o próximo inverno, porque os invernos merecem tapetes de lã para que a casa se torne mais quente com a presença daquele mimo no chão. Não fossem os pés sujos dos filhos faria mais uma dúzia e encheria a casa com tapetes de todas as cores e teria que mandar o gato para outra freguesia, porém seus filhos chorariam noite e dia, dia e noite. Não era possível tal feito. Com gato e sem tapetes. Desistiu de bordar pelo resto do dia. Passaria aquelas poucas horas ouvindo o folguedo das crianças a brincar no pátio e deu de cara com a pensante que olhava com vivo interesse o guardar do bordado numa sacola cor de rosa.

A blogueira notou a outra guardando lãs e agulhas e dobrando aquela tela sem cor numa bolsa cor de rosa, no que ela pensava em guardar um bordado tão atrasado quanto aquele dentro de uma sacola horrorosa daquelas, e escreveu isso em seu blog para advertir consumidoras a respeito de produtos duvidosos e com destino certo. O lixo. Escreveu, escreveu e escreveu por mais duas horas ouvindo o suspirar da Silvia e o não existir da pensante, aquela que sentava à sua direita e que tinha certeza de que agora sim estava morta. Salvou seu trabalho sem conferir uma vírgula e acessou os números de emergência em seu i-phone. Trouxe lenços umedecidos para limpar a maquiagem borrada da bordadeira e convidou-a para chupar um picolé e foi quando as duas, blogueira e bordadeira deram-se conta de tudo quando ouviram a voz mais rouca e sem uso do mundo dizendo que também queria um picolé, “mas eu quero um picolé de chocolate”.


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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Nós e a Campina, a Campina e nós



Por Helena Frenzel


Parece que foi ontem, ontem mesmo, quando tivemos notícias do sumiço da Ritinha. Pra ser mais exata, foi no dia 20 de agosto de 2012, há quatro anos. A Ritinha, se você não sabe, sumiu depois de ter passado uma noite dançando com um moço bonito em plena Quaresma. É que confundiram as datas numa troca e extravio de cartas, uma confusão do demo! Deus que me perdoe, melhor nem falar no catingoso, pois vai que acontece comigo o mesmo que se deu com o Laudemir, que encontrou pelo caminho um féretro fantasma. Credo em cruz!

E passado esse susto me refresquei sabendo do caso da Dona Lucia, a morta "quente" que o Barbeiro e o Padre Dimas… Ah, esses dois!, que também andaram investigando as misteriosas badaladas que assombraram a Campina da Cascavel. Mas agora já sabemos que a Lucia foi o amor de muitos e, pelo visto, não foi de ninguém. E ao longo desses quatro anos tivemos a felicidade de ir vendo nascer e crescer tantas histórias e personagens como o Tio Antero com seu ouro no rio, os infartados Alcides, Angelin e Romeu, por quem ainda hoje a Dona Isabelita chora, e chora de se contorcer. 

Neste meio tempo vimos nascer e crescer também nosso jornal, e foram oito números, oito números especiais com contos da Campina, contos de Fufu Lalau e textos de convidados. Quem sabe um dia… Ai, meu Padin Cisso, quem sabe um dia eu consiga continuar com o jornal… Vontade não falta, mas tempo... 

Sim, mas voltemos à Campina: tantos dilúvios, sumiços, chuvas de sapos,  pragas de piolhos, ET’s amantes de milho, mulheres resolutas e maridos abandonados. E o bígamo? O bígamo naufragado… Dona Silvia fez muito bem! E eis que à boca pequena ficamos sabendo do encontro que a Dona Maria teve e fez de tudo para esconder, mas na Campina nada se esconde, até o capim fala! 

E foi também quando soubemos do Firmino e de sua previsão para o fim do mundo. É que os Maias haviam dito (assim contaram) que a Terra iria para as cucuias em 2012. Já estávamos em 2013 e nada do mundo se acabar, como já estamos em 2016 e… Bem, melhor nem falar, já que tem uns ditadores lá pela Ásia louquinhos para transformarem o planeta numa nuvem de pó só, o que já fomos todos um dia aliás… 

E 2013 seguiu na Campina com a procissão dos vivos e um tapete de Corpus Christi especialmente para saudar o bispo, e que bispo! Cruz credo! Dizem as más línguas que era um bispo que já estava morto há mais de cem anos. Será? Há fotos que comprovam. Seguimos o ano com outro desaparecimento misterioso: dessa vez o da Dona Lurdes, e o marido que nunca se consolou. E foi quando o Amâncio presenciou uma reunião de caboclos, todos rebeldes e mortos em pelejas do passado. Aí eu me encrespei e vi outros personagens chegaram:  Olavo e o Compadre Rui, mostrando que é na bodega que nasce um bom causo. E como nasce! A Dona Edite, casada com o tal do Victor Hugo, um causo mais que cabeludo! Hisurto! Tô pra ver! 

Daí eu soube do causo do Cristóvão e de suas alucinações. Tinha a ver com as rosas que o Coronel Eusébio conservava da Dona Adelaide, e o caso é tão sensível e insólito que não posso reproduzir sem me emocionar, você tem que ler sozinho ou sozinha, com esses olhos que a Terra há de "jantar", como aquele que a Isabel preparou esperando pelo noivo e aquele da família pioneira, que revelou o genro preferido da "mamma" e o segredo do seu tempero excepcional. E muitos jantares mais se seguiram, picantes revelações! Mas quase me mordi de medo foi ao lembrar do causo do homem misterioso que sempre aparecia na casa que um dia foi do Angelin, aquele jagunço… 

Mas o grande mistério do nosso blog está na história da Mariana e do Antônio, daquela noite de núpcias que, estranhamente, é um dos textos mais acessados de todo o blog. Juro que me mordo de curiosidade pra saber o motivo. Tenho uma hipótese, e ela tem a ver com nome do site. Acho que as pessoas acessam pensando achar um tipo de "sem vergonhice", e quando descobrem que "perder a vergonha" não tem nada de "safado", aí já é tarde!… Bom, se elas voltam a nos visitar, disso eu não sei, só sei que somos gratas por todas as visualizações! E que ao longo desses 4 anos já passaram das 31.514!

Emocionante é a história do velhinho que esquece de muitas coisas, mas não esquece do que viu nas guerras. E não podemos esquecer do Licurgo, aquele eterno jovem ancião, o mais enxuto do mundo! Vimos outros desesperados, como a Neusa e seu marido, e o primeiro delegado viver e morrer. E se não fosse o primeiro delegado, o Ubaldo teria até matado aquele sujeito que "amassou" a sua filha no sofá, a que se tornou mãe do Angelin. Ah, o Angelin, aquele jagunço...   

A Campina é um lugar em que aparece de tudo, até mesmo uns espertos comerciantes, e foi por aí que o Tabelião abriu o olho com o Humberto e a Lizandra, que se foram felizes contando a dinheirama. E foi quando o Nino quase matou o Padre Dimas, que só não morreu porque… bom, não era chegada ainda a sua hora, como descobrimos depois, e ele sobreviveu a todas as tentativas, ainda porque as gentes só morrem na hora que têm mesmo que morrer e isso vale também para gentes-personagens.

E as visitas das almas penadas nunca deixaram de ocorrer, como daquela vez que a Emma, uma morta, voltou pra pedir ao Padre Dimas uma missa de sétimo dia não sei pra quem que também já havia passado. Credo em cruz! E com a morte do Tarcisio fomos saber como o delegado, o primeiro, tomou em quartas núpcias a Dona Celina e então tivemos um dia festivo: 28 de outubro de 2013 saiu o primeiro volume dos contos e causos da Campina em e-book.

Outros personagens inesquecíveis são a Asdvencia Emilia, uma benzedeira e tanto, sábia por demais. Daí teve o causo da malhação do Judas, que foi a última daquela vez, não fosse a ação do delegado antigo, que ainda não era o Jurandir. Foi quando se soube do Coveiro e da despedida do Sargento. E também de Benvindo de Pato Branco, que saiu pra comprar cigarros e … nos deu a idéia pra um novo e-book

Fechamos então 2013 com o natal do Coronel Vitorio e o sumiço do Papai Noel. Começa novo ano e conhecemos Juvenal e Iracema, Coronel Passos Maia, o Aldir e seu bugreiro, o Inácio e Dona Luísa, e o livro misterioso, a carta da Alana, que em tempos de guerra trouxe o Mello para casa. O causo do cavaleiro, que a Dona Jovilde e o seu Alencar viram chegando, foi quando setembro sumiu. A morte do delegado e a vinda do comissário do governo, que pouco durou na Campina. A Karina e o Leandro, e o copo premonitório. E o marido da Salete, outro que desapareceu. 

A esta altura Frei Leonardo já havia chegado e o Tabelião entrou na cidade com o primeiro automóvel da Campina. Ainda deu tempo para o Wilson e seu compadre divorciado e para o triste caboclo João nos contarem das suas, e houve espaço para a ironia com as cartas do Percival e outras donzelas. Mais um causo de Quaresma, só que agora com o Adriano e das coisas estranhas, como o que aconteceu no casamento do Osório com a Donana.

Se, para mim, um número mágico é o 15, para o povo da Campina deve ser o 16… e o que acontece nos dias com este número está por aqui, tudo registrado!

Das aventuras do delegado Jurandir, o novo delegado, desse eu nem conto, pois daí todos já sabemos o que aconteceu, e tudo está nos diários do Padre Dimas, que Frei Leonardo leu e releu.

Fato é que foram quatro anos na companhia de histórias e personagens vivos e interessantes. E teve de tudo: riso, informação, choro, assombro, chegadas e despedidas. E por todo esse tempo e personagens escrevi este texto para agradecer à minha querida comadre Michele a parceria e a generosidade de compartilhar estes „causos“ também neste espaço. 

Parabéns, comadre Michele! Parabéns, Campina da Cascavel!
Se tivesse sido planejado, nada teria dado certo, nem teria sido tão bom.

E que venham novos causos, contos, crônicas e coisas do tipo! Sigamos então!





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quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Despedida


Por Michele Calliari Marchese

Hoje escrevo para despedir-me. Despedir-me de alguns dos meus melhores personagens. Foi um processo lento e doloroso que começou com a morte do delegado mais intrépido que a Campina da Cascavel conheceu. Mesmo com a possibilidade de o novo delegado suprir incansavelmente com a segurança da cidade, ficou uma lacuna sem respostas e sem perguntas. Adoeci no dia em que escrevi sobre seu passamento e a dor foi tão grande que achei que ia morrer. Passei três dias em completa miséria literária, mas era necessário, faço o que?
Despedi-me vagarosamente e sem piedade do Padre Dimas, suguei tudo o que dele poderia tirar, mesmo em sua plácida velhice. Não o enterrei, é certo. Sucumbiria no primeiro parágrafo e covardemente deixei-o morto sem uma linha sequer. 
Escrevi sobre diversos velórios, mortes incomuns e personagens nem tanto. Todos de alguma forma marcaram minha existência de forma brusca e intolerável. A cada novo féretro escrito, ia-se junto um pedaço de mim. Uma sensação ou um desconsolo que não consigo definir. Muitos foram de alívio, outros de pesar, porém a maioria mostrava como o silêncio daquele dia poderia ser devastador. São as perdas, tão comuns. 
No lugar do Padre Dimas surge outro grande batizador de crianças nas décadas de 1920 e 1930, o Frei Leonardo. Ele existiu e fazia o trabalho junto com o Frei Dimas durante a colonização do Grande Chapecó, aqui, na Campina da Cascavel.
Frei Leonardo tem todos os ingredientes para um bom causo: jovem, cheio de esperanças e totalmente incrédulo quanto à fé e a religião. Por várias vezes tenta largar a batina, porém ouve a voz interior de sua mãe, cujo sonho era ver o primogênito ordenar-se padre e, submisso, não dá o passo decisivo. Por conta disso, passa a vida cultivando uma paixão platônica – ninguém nunca soube – e acariciando em seus mais ternos sonhos a construção de uma família com a mulher amada. Mas vocês já leram sobre isso.
Gostei de encontrar os Diários do Padre Dimas, deu-me mais esperança quanto ao futuro da Campina da Cascavel. Ao todo, 210 cadernos escritos numa letra apurada e definitiva. Lá estavam descritos todos os batizados e casamentos, construções e reconstruções. Inclusive de sua própria vida. Creio que ele daria cabo dos diários se pudesse, porém aquele sequestro execrável o deixou sem forças e meio desmemoriado. Jamais imaginou que os cadernos seriam lidos por alguém e muito menos por mim, sua criadora. Eu sabia tudo sobre ele, menos sobre os diários. Como é que um personagem, fruto da imaginação consegue burlar o olhar atento de sua mãe – que sou eu – e passar incólume por anos a fio, sem deixar rastros? 
Mais um mistério sem solução. 
Tomei a resolução de queimar os diários – depois de lê-los – para que ninguém jamais soubesse dos pormenores de sua existência e do que lhe ia à alma. Um homem de fino calibre, estudioso de todos os assuntos, com a maior fé que alguém poderia suportar para si e capaz de espantar o demo. Juro.
Senti o mesmo que uma mãe sente ao perceber seu filho entrando na adolescência misteriosa. O que se passa? Por que tantos diários, meu Deus?
Nunca saberei dizer, mesmo sendo ele criatura oriunda da massa mais cinzenta do meu cérebro. 
Falando em massa cinzenta, naqueles idos anos gloriosos de crescimento comunitário para a Campina da Cascavel, aconteceu que o Frei Leonardo, exausto de tanto ler os famigerados diários do Padre Dimas, resolveu de comum acordo comigo, ir queimando um a um, conforme íamos lendo. 
Cada caderno queimado gerava uma nuvem de fumaça que encobria a cidade inteira, como um nevoeiro; e era preciso mais de dez dias para a dissipação daquela nuvem de segredos alheios que perambulavam ao sabor do vento e adentravam casas e narizes, tomando conta de tudo. Não se enxergava um palmo na frente do nariz e muita das vezes era necessária uma vela acesa durante o dia para as mulheres poderem cozinhar. Os homens não conseguiam trabalhar na lida, que dirá participar da missa.
Obviamente que as missas foram canceladas em decorrência de tão nebulosa desventura e o Frei Leonardo resolveu então queimar um diário por mês, para que a população pudesse trabalhar nos vinte dias restantes. Negava veementemente saber a origem de tão descabelado tempo e nunca em sua vida contou a alguém que era ele o autor da serração, a menos que tenha escrito em diários, dos quais também não tenho conhecimento. Paciência. Cada um com os seus segredos.
Naquela época o povo acostumou-se com aquela fumaça, imaginem que foram 210 meses de neblinas ocasionais e que duravam em média de dez a quinze dias. Elas não cheiravam a queimado como todas as fumaças de papéis queimados fedem, os cadernos do Padre Dimas sequer tinham pequenos traços de bolor em sua emanação. Acredito que eram perfumados conforme o gosto pessoal.

Foi isso o que aconteceu. 


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