quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A inconsciência


Por Michele Calliari Marchese

Deitara na cama para dormir. Não estava com sono, apenas com aquela falta do que fazer, pois já tinha feito tudo, tudo, desde regar a horta até espanar o pó dos móveis com uma morosidade quase cansativa e pensava, pensava, pensava, pensava em tantas coisas como aquele domingo poderia ser tão maçante, tão sem nada, as horas arrastando-se lentamente, se pelo menos fosse já o entardecer decerto teria um vislumbre da noite para findar aquele dia tão improdutivo; todos os domingos eram assim, pensou. Trocou de canal na televisão sem assistir a nada, e lembrou que teria que comprar pilhas para o controle senão ficaria sem em poucos dias, pois havia comprado a televisão há muitos anos e nunca havia trocado as pilhas, como duravam, nem sabia o tamanho que teriam e resolveu abrir a tampa para verificar o tamanho delas e uma pulou para fora caindo para debaixo da cama. Deixou a pilha lá, inerte no meio daquele chão imenso, aquele esconderijo de pilhas e notou que ele também se escondia em seu enorme esconderijo caseiro, inerte, tolo talvez para não ver o rico dia que fazia lá fora, ou escutar o pio dos passarinhos e lembrou que seu pai lhe dizia que quando as andorinhas revoavam pelo céu, era porque começara o verão.
Levantou-se da cama. Recolheria a pilha e procuraria alguma andorinha, talvez tomasse um sorvete ali na esquina e pensou quando viu as pombas depositando gravetos no peitoril da janela que falta faz meu pai nessas horas, pois discutiríamos o avanço irrefreável da população daquelas aves citadinas, porém nunca mexeríamos nos ovos postos ali, com a maior confiança que de ninguém ousasse mexer neles, tenros, a vida se fazendo aos poucos dentro de uma casca branca, pequena, pensariam? Acho que não. 
Lembrou-se de sua discussão com um amigo sobre a questão da felicidade e da morte, especulações para uma vida inteira, dizia esse amigo. Onde estaria? Nunca mais ouvira falar nele, se tinha ido embora, se não, procuraria o telefone e ligaria mais tarde para ele, para pedir como vai a família, o trabalho e as questões da felicidade e da morte tão intensamente faladas naquele dia onde o vinho era bom e a companhia melhor ainda. Lembrou-se de uma palavra que ele disse: “panvitalismo”, que tudo tinha vida, desde a pedra até a nuvem. Nunca acreditou. Por isso, achava, havia perdido o amigo. Olhou a pilha na palma de sua mão e riu-se pensando que se ela tivesse vida, quando findaria? Quando acabasse a bateria decerto, e que vida era aquela, presa dentro de uma caixa preta, sem ver a luz do sol, somente enviando energia para o controle remoto funcionar, se não funcionasse mais enterraria aquela pobre alma positivo-negativa no cemitério das pilhas, dentro de uma caixa encostada em algum canto qualquer. Eram inconscientes aqueles seres inertes, porém com vida e que nos rodeavam: mesas, cadeiras, réguas, tesouras, teriam sentimentos? As unhas? Os cabelos sentiam? Se fizerem parte de um ser sentimental, os cabelos também sofriam com os sentimentos? Riu-se desse atroz pensamento e levantou os olhos jurando de mãos juntas que nunca mais pentearia os cabelos para que não se machucassem, coitadinhos. Ligaria para o amigo sim e falaria sobre tudo isso que pensava e analisava como poderiam as coisas ter vida. 
Sabia exatamente a reação que seu amigo teria, de mudez, da não respeitabilidade, do sofrimento em ver alguém que não comungava com os mesmos sentimentos que ele, um eterno sentimental, um cuidador de coisas e sentimentos alheios, ele mesmo o próprio ser panvitalício. Não perderia essa discussão por nada na vida, mas não achava o telefone e não havia ainda largado a pilha e sentiu o braço doer de repente; encostou-se à parede segurando o braço e largando a pilha que caiu fazendo barulho no chão e riu-se dizendo “coitadinha, machucou?”.
Sentiu outra fisgada no braço que fez com que caísse no chão estertorando de dor e logo uma náusea profunda invadiu todo o seu corpo e pensamento, seguido de uma luz muito forte; antes do desmaio abriu infimamente os olhos e deu de cara com a pilha próxima de si talvez a rir-se das elucubrações feitas anteriormente e um breu terminou por encerrar as pálpebras, deitado em algum lugar, sem pensamentos, inconsciente.
Os minutos passavam rapidamente. Lembrou-se que tinha que ligar para aquele amigo sobre aquela palavra que não conseguia mais lembrar, sobre o que, qual era o assunto. Por que havia uma pilha no chão não sabia precisar, nem tentou levantar porque não podia e nem queria, havia terminado o domingo? Novamente a inconsciência. Os minutos passavam rápidos e incólumes pelo tempo da vida, uma luz muito forte o fez assustar-se e questionar o que fazia deitado no chão, ao lado de uma pilha AAA. Aquele amigo já havia saído? “Que dor é essa que sinto pelo corpo todo?” e em seguida um torpor de alívio o invadiu, e escutou o silvo de uma campainha a tocar insistentemente. Fechou os olhos.
Sentiu um solavanco chacoalhando todos os ossos do seu corpo e alguém a sacudi-lo com força e determinação. O domingo havia terminado, amanhã é segunda-feira, dia de recomeçar. Hoje é segunda-feira? Os filhotinhos das pombas haveriam nascido; a pilha jazendo numa caixa de entulhos e descartes, o telefone do amigo em cima da mesa, o telefone fora do gancho, o pai a lhe chamar para verem as andorinhas revoando silenciosamente através das árvores vivas e verdejantes. E então novamente a dor no braço, porém com uma sensação de bem estar de imortalidade que encaixou de chofre em seu peito, respirou longamente, ainda era domingo, poderia usar a pilha por mais algum tempo e admirar as andorinhas revoando junto com as lembranças de seu pai distante. Dormiria somente depois que falasse com o amigo.

Tinham muito a conversar.

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