quarta-feira, 19 de julho de 2017

A Minha Versão


Por Helena Frenzel

Passei a maior parte do tempo pensando nos outros, reprimindo o verdadeiro sentir para, num dia, tudo vir à tona; do fundo do rio veio à tona. Tenho uns dez minutos para contar a minha versão, antes que cheguem e me levem para o lugar onde dirão tudo o que for dito pode e será usado contra você. Pois aquele dia havia começado difícil, várias noites sem fim não deixadas para trás, e uma discussão começada sem futuro previsto e certa ameaça de separação: como estamos não ficamos e juntos assim não vamos ficar. Nada altera tanto a vida quanto um filho e foi isso o que nos aconteceu. Um ano e meio é idade que criança começa a testar os pais, fica tudo muito mais complicado. E numa manhã assim, buscando ar e forças para seguir, em meio a problemas práticos e aborrecimentos acumulados, caos na casa e na vida, saí para passear com meu filho esforçando-me para não descarregar nele a minha tensão. Adultos pensam; crianças, não. E antes que chegasse a um ponto de no return saí buscando o conselho das árvores, nuas de frio e vestidas de neblina turva. Pois assim íamos pelo caminho, um caminho marcado por todos os dias que o fazíamos, com todas as paradas obrigatórias e o teatro habitual do meu filho que vez em quando empaca como quem diz: só sigo se me carregarem e eu digo não carrego até que ele se convence, aceita e segue emburrado. Todos os dias tinha sido esse o jogo. Nisso, passou a mulher com o cachorro, subindo. Ela passou por nós e parou mais adiante, senti em seu olhar a muda acusação: mãe má, como pode forçar o filho a subir todo este caminho sem querer carregá-lo? Não ligo para opiniões alheias, pouco menos para olhares. Segui meu caminho tentando não cair no teatro matinal que meu filho representa igualzinho, todas as manhãs, para que os outros pensem que sou má mãe, mas quem não viveu a guerra fria não sabe o que é ser vigiado. As pessoas deste lugar dizem defender o privado, mas só o fazem pelo gostinho de, mais tarde, fuçarem vidas alheias em busca de cadáveres no armário. A premissa é que todos têm algum. Já quem viveu fora dessa paranóia não tem medo de pôr tudo na rua: mesa, cama, cobertas, tudo aberto. Por isso dizem que não há graça na moderna novela: esfinge sem segredos, como diria Oscar Wilde. Pois a mulher seguiu o seu caminho; eu e meu filho, o do rio. Nos cruzamos mais à frente: nós indo e ela voltando, o cachorro ia na coleira e dele só recordo a cor: preto. Eu havia deixado meu filho um pouco mais para trás naquele momento, estávamos no meio do carrega-não-carrego, empate equilibrado. Eu sabia que se me afastasse um pouco ele desistiria de brincar de estátua e viria ao meu encontro, mas devo ter feito uma cara de enfado, o que disparou o conselho não pedido nem aceito daquela mulher, soando a repreensão: uma criança desse tamanho não pode ser tratada desse jeito! E citou um cenário pouco provável de um carro vindo em alta velocidade na curva do outro lado e eu sem tempo de reagir. De onde eu estava poderia ver com antecedência qualquer coisa se aproximando da curva distante, fosse gente ou algo mecânico, mas não achei que valesse a pena argumentar. O tom autoritário e o intrometimento não desejado foi o pavio que explodiu toda a raiva e tensão tragos, e cresceu como uma confusão de Faixa de Gaza, sem futuro nem fronteira, como pura troca de opiniões e agressões, onde todos têm e não têm razão ao mesmo tempo, quando o sábio consegue calar se o descontrole não foi mais rápido e cortou todo e qualquer fio de raciocínio plausível, e deuses se retiram do meio para não terem que decidir por lado nenhum, e somos um barril de sentimentos prestes a voar pelo ar, ou um martelo ou um pedaço de pau. Alguns fingem a vida inteira até que a morte vence: repressão mata por sufocamento. Quando meu filho, eu, ou um programa trava, a única coisa a fazer é apertar o botão de desligar, esperar um pouco e ligar novamente "a máquina", e num desses laços ininterruptos me vi naquela manhã, no automático. Tudo piorou quando a mulher disse que era educadora do Estado e essa palavra "Estado" deu vazão a uma revolta cega contra toda cultura ou mania de observar a vida alheia, e dar palpites não pedidos, e de mandarem oficiais de justiça às nossas portas para termos que provar que não, senhor, não temos nenhum cadáver no freezer, como pensou o vizinho que noite e dia observa nossas ações e vigia para o mal do bem comum, e tem solução para os problemas de todos, menos para os próprios, sequer tempo para limpar a própria calçada quando muita neve cai, muito menos consegue enxergar a inutilidade desse serviço de vigilância voluntária que o Estado ou a comunidade nem pensam em remunerar, mas que é feito e incentivado em nome do bem estar de todo um povo que nada mais quer do que ser livre e viver a gosto, sem intromissões. Eu não sou daqui, desconheço essa necessidade de vigiar os outros e odeio ser vigiada, muito mais detesto ter minhas ações julgadas por estranhos, pessoas que não querem ajudar ninguém, nem mesmo os necessitados. O que lhes move é o puro prazer de controlar, e só. E numa ausência de razão eu disse à mulher, se foi mesmo isso, que eu não tolerava ninguém se metendo na forma como educo meu filho, que ela não me conhecia, nem a ele ou à nossa situação e que por isso não tinha o direito de dar-me orientações, ainda mais não pedidas. Eu disse que não queria ouvir seus conselhos e ela gritou que me os daria assim mesmo, quisesse ou não ouvi-los. E a fala mal começada do meu filho parou ali, no rio. Tomei-o nos braços — ele vencera a queda de braços — e dei as costas à mulher depois de mandá-la para o inferno, mas não sei se ela foi. Lembro de ter chegado mais à frente, me sentado em um banco e ter tido a visão dela sumindo, por entre a neblina, puxando o cachorro sem olhar para trás. Eu e meu filho ficamos mais um pouco no banco, mirando o rio. Eu, tentando conter as ondas de raiva que me sacudiam; ele, imóvel, nem um pio sequer. Decidi voltar para casa não mais dando a volta pelo cemitério, nosso caminho habitual, mas passando por meio dos mortos. Com meu filho, agora em meus braços, subi as escadas devagar; eu e ele, cansados do esforço matinal, e o peso dele englobando o mundo, meus olhos vagando entre túmulos, lajes e epitáfios. Cemitérios são lugares bonitos e tranqüilos, bons para se pensar no acaso. E eu seguia tentando pensar durante o caminho, mas chegamos em casa e toda a raiva em forma de lágrima escapou-me em soluços e foi assim que derreti e me entreguei. Antes disso tive ainda tempo de tirar os sapatos do meu filho e limpar a lama e o excremento que ele havia pisado em algum lugar. Lavei os sapatos dele e pus para secar, como sempre faço. Estávamos sozinhos em casa e eu chorava como um rio cheio no inverno amazonense, levando toda a margem junto e toda tentativa de ponte e represa. Trabalho doméstico não rende, mas acalma: sentei-me à tábua e comecei a passar roupas, meu filho tremendo e girando, mudo, ao meu redor. As lágrimas vinham ainda em soluços com muita força e, nessa hora, a campainha tocou. Do resto você já sabe. Mandei a mulher para o inferno, mas não sei se ela foi, já disse. Lembro-me dela sumindo na neblina, puxando o cachorro pela mão. Senti raiva, muita raiva. Só havia excremento em nossos sapatos, juro, não lembro do sangue nas mãos.



© 2017 Blog Sem Vergonha de Contar. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.