quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Causo da Dona Lucia


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.

A Dona Lucia era conhecida na comunidade pela sua beleza deveras extasiante, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos caindo pela cintura e que balançavam ao menor movimento da cabeça. Não tinha namorado e nem queria um “porque ainda estava no ovo o galo que iria tirar ela de casa”.
O pai de Dona Lucia não aguentava mais despachar os candidatos mediante a negativa da moça, até que foram espaçando os pedidos de namoro, casamento e, pasmem, até de ajuntamento por um moço casado de Faxinal. Foi a gota d’água que faltava para que se fechasse de vez o coração da bela Lucia.
Numa tarde de julho, voltando da mercearia, Dona Lucia sentiu uma soneira dos diabos e correu de volta para casa para dormir um tico, pois tinha seus afazeres e não costumava deixar a mãe sozinha na luta doméstica. Chegou em casa, deitou na cama e dormiu.
Quando foi a noitinha o pai deu pela falta da menina, perguntou e chamou para que ela fosse à mesa jantar. “Tá dormindo, a coitada” disse a mãe toda prestimosa. “Deve ter se cansado, deixe dormir, se ela sentir fome ela come depois”. Jantaram os pais e os oito irmãos todos varões. A mãe ficou lidando com a louça na cozinha e reclamando que o sabão estava no fim.
Na manhã do dia seguinte, com a geada cobrindo tudo, foram se levantando um a um, mas nada da Dona Lucia acordar. Quando chegou a hora de tirar o leite das vacas e tratar as galinhas, a Dona Lucia ainda estava dormindo e mesmo depois de muitos chacoalhões ela continuava em seu sono. A mãe começou a ficar assustada e a gritar convulsivamente.
“Ela está morta?” pediram.
“Não, veja, ela tá quentinha da silva”, disse a mãe entre soluços.
“E porque ela não acorda?”, disse o quinto irmão.
“Deve estar com algum mal”, o pai intercedeu. “Vou chamar o protético”.
“Chame um médico, homem, o que vai fazer aqui um protético?” disse a mãe.
“O médico não vem mais nesse mês”, disse o primeiro filho varão.
A mãe angustiada resolveu esperar o protético e até que ele não chegasse, resolveu chamar as benzedeiras que chegaram rápido e em conluio e muito cochicho chegaram à conclusão que o mal da Dona Lucia, benzedeira nenhuma curava. Fizeram uma corrente, acenderam algumas velas e entregaram nas mãos do protético, dando graças que assim, os maridos não teriam mais a quem olhar a não serem elas mesmas.
O protético chegou e começou o exame. Mal ousou abrir o botão do casaco para auscultar-lhe o peito com os ouvidos e enfim diagnosticou: “Está morta, mas esperem até amanhã que o corpo estará frio para enterrá-la” e virando para o pai choroso disse: “São duas galinhas, senhor”.
O padre Dimas, que chegou em seguida, não acreditava no que via e perguntou então há quanto tempo ela estava daquele jeito. “Cinco dias hoje, seu padre, e não esfria.” O padre resolveu dar um fim naquele invelório e mandou chamar o barbeiro para buscar a moça, não sem antes dar a extrema unção.
Então veio o dia que a Dona Lucia seria enterrada. O povo fez fila para dar o último adeus e tocar em suas mãos para sentir se ela já tinha esfriado.
Dona Lucia estava quente, como viva, como uma morta viva.
O povo então saiu da casa para comer os assados que a mãe tinha feito e tomar o vinho do vizinho, até que o barbeiro dava os retoques finais na morta e dar início ao féretro.
O caixão baixando na terra foi a visão mais triste que se teve notícia desde então e quando encostou na terra fria e gelada ouviu-se um “toc toc”. Todo mundo empalideceu e emudeceu e alguém lá no fim da fila desmaiou.
“Toc Toc”
“Toc Toc”
O coveiro agitado e nervoso já estava subindo e se agarrando pela terra do buraco.
“Abre aí”, disse o pai do alto do buraco.
“Eu não abro, não senhor”, disse o coveiro patinando no buraco e se agarrando nas pernas das pessoas que estavam na beirada para escutar melhor.
“Toc toc”
“Pois eu abro” disse o pai se enchendo de coragem e esperança de que a filha estivesse ainda viva dentro do caixão. A maioria já tinha escapado do cemitério. As beatas ficaram abanando o rosto da mãe que desfaleceria a qualquer momento.
Quando o pai e os oito irmãos conseguiram abrir o esquife, foi uma exclamação generalizada. O que estava no caixão era um amontoado de roupas, pedras e objetos de peso, mas nada da morta. E o “toc toc” continuava, até que por fim descobriram que o autor das batidas era o marceneiro que morava em frente ao cemitério. A mãe e as beatas acabaram por desmaiar e o pai desolado jazia de ataque cardíaco; não aguentou o tranco e por fim usou o ataúde da filha para seu próprio e a confusão de coisas e sentimentos levou o prefeito a decretar luto civil por três dias. Até o governador veio para a Campina para dar o desaparecimento por verídico.
Depois de muitos anos enfim, soube-se a verdade quando o barbeiro morreu. Ele já estava na casa dos sessenta anos e há muito doente de sífilis. Encontraram o corpo dele estendido na cama, nu.
Ao lado dele um caixão com tampa de vidro e a Dona Lucia dentro, em perfeito estado de conservação, também nua e ainda quente.



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